Sunday, February 12, 2012

Sanguínea

N.A.: Este conto foi publicado há alguns anos em uma revista, livro de coletâneas, ou algo parecido, cujo título não me ocorre, mas assim que souber, informarei. Desculpem a falta de originalidade por não estar postando nada novo, mas tenho encontrado cada vez menos tempo para novas criações, desta forma lanço mão do expediente de auto-plágio.

Eles não acreditavam nas mentiras. Todos mentem. Não haveria uma vida pela frente. Não havia um nome a zelar. Não havia o desejo de serem vítimas. Mas ele buscou a morte, tencionou a vida e antes de dar o último tapa desprezou o arrependimento. Ordenou pela última vez: "enterrem minha carcaça enquanto ainda respiro, o cheiro da terra há de me ser agradável e à escuridão, já me acostumei. Sinto falta da minha primeira escuridão." O último, foi o mais forte dos tapas, depois, o mais animalesco beijo. Naquele dia não houve penetração. Naquele dia ela não obedeceria.

Antes de nascer, Gallimard já trazia uma cicatriz no púbis. Um vergão grosseiro, vermelho, pulsando irregularmente, abrigando culpas subcutâneas. A marca de uma cesariana mal feita, apressada, quando ele não era mais do que um girino. A marca a ser carregada pela continuidade da vida para lembrar de onde veio M. De um pseudo-útero ao útero da mãe.

A presença de Gallimard já oprimia M e quando foram expulsos da casa primeva, ela se recusou a sair. 18 minutos após o nascimento do primeiro, o fórceps a convenceu. Não queria sair, sabia que lá fora teria de olhar para a cicatriz. Queria poder evitar.

A bizarra marca se preservou, mesmo nas suas mais sutis reentrâncias, até o corpo de Gallimard se decompor. Ele viveu por 34 anos, 7 meses e 3 dias. A cicatriz, um pouco mais. M contaria a história.

Não eram gêmeos, eram pai e filha, ainda que fossem irmãos. Natureza reconfigurada. Diferente de algum tubarão devorador de concorrentes já no ventre materno, Gallimard concebeu outra vida. Gerou sua rival da sua carne. Não a devoraria, a subjugaria. Teria um sparring para treinar seu instinto de dominação. Uma fêmea, filha e irmã. Várias faces incestuosas.

Existiu uma família com pai, mãe e irmãos, mas a cicatriz estava presente, pulsando sob o emaranhado de pêlos, revivendo um pacto anterior à luz.

M nunca tocava no assunto. Evitava falar sobre aquilo como se agindo assim, não materializasse o sonho. Mas ela sentia os odores da cicatriz e isso a remetia à suas obrigações de boa filha, boa irmã e dócil fêmea. A família de aparências era ideal para justificar a constante união. Ela cheirava, mordia, depositava seus líquidos, mas não olhava para a cicatriz, era a última fronteira do pudor familiar e não suportaria ultrapassa-la.

Não seria ela quem executaria a última ordem. Não lhe agradava fazer algo contra o irmão 18 minutos mais velho, o pai que a pariu e o homem que melhor sabia como puxar seus cabelos. Também não seria ela quem impediria. Apenas olhou Gallimard sangrar até a morte.

Hoje ela ainda sente o cheiro e o gosto do suor da cicatriz e tem nojo, tem tesão, raiva, saudades. Depois reza para algum deus sádico que a violentou quando ainda era um feto. Um deus que não a deixa esquecer das lembranças de de dentro do útero e também não a deixa parar de sangrar. Os sangues de cada mês acompanharão M tanto quanto o sinal acompanhou Gallimard. Não lhe foi dado o direito de secar e conhecer a redenção. Sangrará até a morte.

1 comment:

  1. Anonymous4:51 AM

    muito bom mesmo!

    Kalamed Ali

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