Cansados das
injustiças, guerras, fome, destruição do planeta e outras tantas mazelas
recaindo sobre a raça humana, os mais destacados filósofos, juristas,
estadistas, artistas, embaixadores, artesãos, médicos, sociólogos, sacerdotes,
antropólogos, industriais e demais próceres da espécie, reuniram-se em
assembleia para apontar o culpado por tantas tragédias e em seguida puni-lo.
Certos de não ser tarefa das mais fáceis, combinaram que todos os participantes
desnudar-se-iam de suas paixões e manteriam o foco apenas na razão, concluíram
que a emoção havia motivado de maneira intempestiva muitas iniquidades. O primeiro a tomar a palavra, um jurista com
inclinações filosóficas não perdeu tempo e foi logo apontando seu maior suspeito:
— Nada mais claro e razoável para
mim e, após minha breve argumentação os senhores hão de concordar, de que se há
um culpado, é justamente aquele que tem o maior poder, quem de fato pode
transformar as coisas e, acima de tudo, quem fez as coisas como são. Se eu
construo uma casa e esta desmorona, quem é o culpado? Se faço um refogado e
carrego demais no sal, tornando-o intragável, de quem é a culpa? Se educo um
filho de maneira libertária, sem disciplina, sem orientá-lo devidamente, apenas
ameaçando-o: não faça nada errado (sem explicar porque), senão sentirá a minha
ira, de quem é culpa pelo adulto frívolo e individualista que se tornará?
Assim, quem senão o criador desta obra imperfeita seria o culpado por tantos
males?
Um clérigo de renome internacional,
famoso por sua natureza justa e sua busca pela verdade tomou a palavra.
— Caros irmãos, é bem tentador por
nossos fracassos nas mãos do Pai, seria muito cômodo, traria uma certa
liberdade para podermos fazer aquilo que melhor nos aprouvesse, independente de
causar muitos males a nosso semelhantes, entretanto lhes pergunto: Que tipo de
filho seria eu, se reconhecesse um erro em meu pai e ainda assim continuasse a
reproduzir este erro? Uma vez que reconheço um possível erro em meu pai, já não
sou mais inocente se repetir tal desvio. Isto não significa ter havido erro na
obra divina, posto não ser este nosso lugar, mas apenas uma passagem para a
vida eterna. Uma larga lagarta que põe-se a comer sua folha ideal para
nutri-la, caso resolva querer voar antes de ser borboleta e perder-se em uma
vida desregrada e errática, certamente terá uma vida de lagarta desgraçada,
amaldiçoará o céu e a terra por sua infelicidade e purgará os efeitos
deletérios de seu desvio de conduta e, ao final, não ganhará os ares, pois nem
borboleta será. Mas como investigamos um culpado, creio que devemos pensar não
em um personagem, mas em um sistema de trocas.
Como o assunto sairia da esfera
religiosa, um economista e humanista, coisa que nunca se viu, parceiro do clérigo nas investigações,
assumiu o posto de orador.
— Quando meu colega fala em sistema
de trocas, devemos pensar basicamente em como se dão as relações comerciais,
onde um determinado bem é comercializado não por seu valor de produção, mas por
seu valor simbólico dentro de um sistema aparentemente simples de oferta e
procura. A aparente simplicidade deste sistema pode nos induzir ao erro de que
os preços são regulados por mecanismos racionais de custos, capacidade do
mercado em comprar tais bens e a vontade dos consumidores em adquirirem estes
bens, como não é tão simples assim, os donos dos meios de produção estabelecem
preços elevados, muito mais elevados do que seria necessário para cobrir os
custos de produção e auferirem boas margens de lucros aos envolvidos no
processo de produção e comercialização, para seus produtos ou serviços e, se o
mercado aceitar tais preços e comprarem, eles ainda sobem mais um pouco os
preços para criarem uma sensação de que aquele bem é altamente desejável; aliam
a este mecanismo uma intensa campanha midiática, para referendar seus
discursos. Isto torna, o que deveria ser
um processo de troca, de um bem ou serviço por uma quantidade de dinheiro
(suficiente para ressarcir dignamente os vendedores), em um sistema de
acumulação de capital. O advento da revolução industrial apenas mecanizou o
processo de acumulação que já existia. Antes os nobres ou senhores de terras
acumulavam riquezas à custa do trabalho dos camponeses e agora os financistas
acumulam riquezas à custa do trabalho e do consumo dos cidadãos. Assim, o
principal culpado por este modelo é, na verdade, o modelo de acumulação de
capital.
A partir deste ponto as discussões
começaram a tomar um rumo mais acalorado, cada qual defendendo seu ponto de
vista: o artista defendendo que a falta de arte produz nos homens um
distanciamento de sua humanidade e que expressando-se pela arte as pessoas
poderiam extravazar todas as suas pulsões e desprenderem-se da materialidade
destruidora, geradora de matizes conflitantes do eu com sua psique e apenas a
transfiguração do lugar comum em arte é que poderá redimir os seres humanos; já
o diplomata bradava que aboliu-se o diálogo em detrimento de uma retórica
imposicionista, baseada na força e não na igualdade dos sujeitos.
Lá
pelas tantas, concluíram que apesar de ser tentadora a proposta do jurista em
apontar Deus como culpado, desistiram da ideia pela impossibilidade de
aplicação de punição. Da mesma forma foram desistindo de aplicar a pena capital
em outros acusados ao longo dos debates, por as acusações não terem embasamento
suficiente, ou por serem muito difíceis de serem compreendidas, ou por
requererem um esforço de associação muito grande e foram, pouco a pouco,
absolvendo o mercado, o sistema capitalista, o autoritarismo, a democracia, as
religiões, o ouro, o machismo, o feminismo, o petróleo, a natureza, os
extra-terrestres, o Natal, as olimpíadas, Henry Ford, Gengis Khan, Lenin, Marx,
o capitalismo, Maomé, Jesus Cristo (esta acusação foi a mais fácil de derrubar,
pois se Jesus, Deus e o Divino Espírito Santo eram, ou são, um só, o que cabe a
um cabe ao outro), Buda, Darwin, o vírus da gripe, o sol, o sal da água do
mar, a teroria da relatividade, a lei da
gravidade, o povo badari, Lucy (dos australopithecus), Homero, Moisés, Noé,
Adão, Eva, o amor, Judas, Lilith, Bahamut, a escrita (e os sumérios, por
extensão), o vinho, o sexo até que uma falha no sistema elétrico do prédio onde
se reuniam os deixou no escuro. Sem terem mais como se entenderem, decidiu-se,
por unanimidade, que os trabalhos deveriam ser interrompidos e recomeçados em
outra ocasião, em outro local e com data ainda a ser definida. Como não
elegeram quem deveria tomar estas providências, os ilustres e proeminentes
baluartes de nossa civilização aguardam nova convocação.
LM