Sunday, February 27, 2011

Verbo divino

Saiu da cama e foi direto pro banheiro. Urinou uns três litros, lavou as mãos e o rosto. Não escovou os dentes. Nunca escovava os dentes ao acordar: se já havia escovado antes de dormir e não comera nada durante a noite, não tinha motivos para escovar novamente. No máximo uma enxaguada rápida. Após se justificar para a pasta e escova de dentes, vestiu-se e saiu. Era o dia da entrevista. Precisava tomar uma xícara de café.
Uma firma de Curitiba estava recrutando vendedores para a região. Não exigiam experiência. Parecia bom. Já estava ficando complicado viver da pensão da mãe. Algo parecido com a consciência começava a pesar-lhe. Ainda mais agora, aos quarenta. E a mãe já estava um pouco acabada. Tinha de mudar, especialmente agora que a velha entrara para uma dessas igrejas evangélicas. Já não liberava mais tanta grana, principalmente para bebida. Mulher então, nem pensar. Ta certo que a cachacinha do boteco da esquina não era nada cara e com dez paus conseguia serviço completo com alguma puta gorda do centro.
O maior problema era ter de mentir todas as vezes. Não admitia ter de mentir sempre que fosse pedir mais dinheiro. Precisava arranjar um emprego.
— Fuma?
— Não. — Mentiu.
— Bebe?
— Só no sábado, e socialmente. — Mentiu novamente.
— Tem algum vício?
Pensou em responder a Igreja. Achou que era forçar demais.
— Costumava jogar um bingozinho no galpão da igreja.
— O senhor já teve alguma experiência com vendas?
— Nenhuma.
— Já leu a bíblia?
— Já li Nietzsche.
— Nós vendemos bíblias. O senhor acha que consegue vender bíblias?
— Por Cristo! Aquele filho da puta vai se arrepender de ter escrito tanta bobagem e por ter matado o Barbudo. Vou infestar esta cidade com os livros do Cara.
Descobriu que vender bíblias não era tão fácil assim. Após uma semana só conseguiu vender duas: uma pra mãe e outra trocou por três fódas com a puta gorda do centro.
Após três semanas sem vender mais nada, resolveu entregar as bíblias restantes e acertar as contas. Enquanto esperava o ônibus, na fila do terminal central, resolveu ler um pouco e como só tinha bíblias, achou que serviriam pra alguma coisa. Pegou uma e mandou ver, se empolgou e sem perceber lia em alta voz. Eclesiástico capítulo 3, versículos 33 ao 34 e capítulo 4 até o versículo 11. Quando terminou tinha um punhado de notas miúdas e moedas colocadas ao lado da bolsa de bíblias. Arrecadou vinte e oito reais. Comprou cerveja, uma cachaça da boa e procurou uma puta menos gorda. Devolveu as bíblias, menos uma.
Escolheu um ponto movimentado no terminal e agora lê, a todos os pulmões, um trecho do livro santo, semana após semana, sempre de terça à quinta-feira.

LM
Falar ao pai

O pai falava, quando muito, umas dez palavras por dia. Sempre austeras, de sem retrucamento e destinadas aos assuntos eleitos mais importantes. Não assentia tagarelices e cortava as falas, com olhar cheio de significações ou com um grunhido algo animalesco. Reinava a mudez, como se já tivessem falado tudo. Habitavam nos silêncios da casa, com as falas das sombras. Assim, no semi-silêncio as meninas cresceram, mais com as coisas, menos com as palavras— com quase nada de risos.
Viviam: o pai fazendo vezes da mãe, mal e mal, sem dar conta de ser ele mesmo, as meninas, fazendo-se de filhas. Na quietude da casa os mais insignificantes ruídos ganhavam cara de trovão: um estalar do madeirame, um assovio do vento, duas ou três rolinhas ciscando no telhado, o latido pro ar do cachorro e algum pensamentozinho que pudesse escapar das cabeças mais distraídas. Calhava que da rudeza do seu ensimesmamento, o pai também deixava transbordar um fiapo de pensar. Misto de lembrança com cisma; sentimento com atavismo; querer com dever. Seguia um profundo suspiro.
Quando em domingos cheios de sol, azuis como um cartão postal, o silêncio por pouco era superado por esboços de risos, aprovar o gostosume da galinha ensopada, polenta farta, repolho frito, radiche e uma tirinhas de torresmo frito, bem salgado, pra jogar sobre o prato cheio de não poder. Obrigados, passa a carne, mais polenta, um copo d’água, bater de talheres na louça, vento balançando o pé de limão no quintal, e o almoço ia. Elas limpavam tudo bem rapidinho e o pai, como todos os domingos, dormia. Nenhum piu, sussurros ou cochichos enquanto ele não acordava. Era o dia da felicidade, quando desconfiavam que amavam-se, sem saber de todo, sem expressar, sem falar. Do jeito duro para não perder o respeito das filhas, reverenciando o pai sem poder correr-lhe ao colo. Formal, rodeado de quases, mas quietos, amavam-se.
Anos e velhice avançaram e o homem sentiu todo o pesadume. A morte fez-se e o pai, querendo recuperar o tempo perdido, ou talvez sentindo apenas medo, quis conversar: “minhas filhas, falem comigo, sinto medo do mar de silêncio que está chegando, falem, mostrem sua voz.” Mas não sabiam o que falar, a não ser “sim, pai!”.

LM

Thursday, February 17, 2011

A adaga de Celan

Quem conheceu Roldo Bonadiman ou ouviu falar de seus feitos, jamais teve motivo para duvidar que suas palavras fossem um recorte bastante fiel da realidade. Foi preso pelos Camisas Negras, conseguiu fugir antes de ser executado, liderou inúmeros grupos armados de resistência pelos subúrbios de Roma e, em 28 de abril de 1945, ajudou a pendurar o Duce e sua amante no telhado de um posto de gasolina. Roldo podia ter inúmeros defeitos, mas mentiroso não era, muito menos lunático, o que fiquei sabendo tarde demais e, apesar da fama de aventureiro ─há quem o tenha classificado como mercenário─ ele era também um artista e mantinha intensa correspondência com muitos outros artistas e intelectuais, especialmente durante o pós-guerra. É uma hipótese plausível afirmar ter iniciado neste período sua amizade com Paul Celan e como não sei dizer ao certo como isto se deu, assumo tal hipótese como verdade. Minha convicção está no fato de Hans Bender ─provável elo entre os dois─ citar, em um artigo de 1959, um sarau onde se apresentariam Celan e Bonadiman. O certo é que os dois trataram de erigir uma sólida amizade, mesmo que algum observador distante pudesse objetar que tão aparentes diferenças de personalidades seriam incompatíveis em uma amizade duradoura.
Quanto a mim, conheci Roldo Bonadiman em 1995. Fomos apresentados na casa de minha mãe, durante um jantar dado por ela a um pequeno grupo de velhos amigos. Fiquei sabendo de sua influência na decisão de meu falecido pai, de migrar da Itália para o Brasil. Para mim isto bastou como apresentação e, como já estava há alguns meses sem ver mamãe, fiquei no jantar mais tempo do que minha paciência com aqueles velhos rituais de relembrar o passado poderia usualmente tolerar. Fiquei vagando entre conversas sobre a guerra, sobre cadáveres de parentes invocados pelas lembranças, por lombadas de livros da minha infância ─ainda na estante, como a me esperarem─ e por toneladas de um nostálgico sentimento de procura do tempo perdido. Pouco a pouco os convidados foram se retirando, até ficar apenas Bonadiman, que olhava através da janela para algum ponto entre a noite e a história. Mamãe dormitava no sofá. Ele pareceu ter percebido que eu o vigiava e antes mesmo de virar-se começou a falar.
─ Charles Trezinni, não é mesmo? Conheci seu pai, um homem com qualidades pouco vistas nos homens de hoje. Era uma das poucas pessoas que verdadeiramente seria capaz de morrer por alguém. ─ Pensei em formular algum tipo de resposta ou continuidade a sua fala, mas antes de eu abrir a boca ele continuou. ─ Ele sempre dizia que era muito fácil sair por aí falando que morreria por fulano, ou por beltrano, pois o sujeito, lá no fundo, sabia que ninguém viria tomar-lhe a vida para cobrar tal afirmação, mesmo quando diante de algum enfermo, se fala que queria estar padecendo no lugar daquela pessoa, mas sabe-se que Deus, ocupado demais com suas tramas inacabadas, não virá fazer cumprir tal desejo.
─ Do que sei, ao contrário de mamãe, ele era um ateu convicto. Lembro pouco dele, mas não esqueço das broncas que ele dava em mamãe enquanto ela me ensinava a rezar.
─ Era o tipo de ateu que falava com Deus, falava de Deus, mesmo que fosse para amaldiçoá-lo.
Após este breve diálogo calamo-nos por alguns minutos. Fez-se um silêncio opressivo, podíamos escutar a respiração sonolenta de mamãe e cada tic e cada tac do relógio de parede parecia levar bem mais do que um segundo para vibrar na semi-escuridão. O relógio começou a armar seu mecanismo para soar um quarto de hora qualquer e poderia jurar que havia produzido o mesmo som de alguma máquina medieval de tortura, enclausurada no mais frio porão da Inquisição. Exagero ou não, aqueles minutos pareceram horas e não sei por qual motivo, senti, naquele momento, que poderia matá-lo ali mesmo, talvez até devesse fazê-lo.
─ Ângelo Trezinni teria lido aquelas palavras, mas eu não tive coragem. Nunca tive medo de morrer, mas o que Celan me pediu estava além de minhas forças. Ele me escreveu em abril de 70 e pedia que fosse vê-lo urgentemente em Paris. Já andava apresentando sintomas depressivos e não tardei em pegar o primeiro trem. Em Paris nos encontramos no Jardin des Plants, próximo da Pont d’Austerlitz, ele estava cadavérico, com olhar distante, sua aparência pouco lembrava o poeta que havia conhecido anos antes. Nos abraçamos longamente e pude sentir que ele estava gelado. Começamos a conversar e a caminhar em direção à ponte.
─Meu velho amigo Roldo Bonadiman, como é bom vê-lo, tocá-lo, sentir seu cheiro ouvir sua voz.
─ Também estou muito feliz por revê-lo, mas o que o aflige?
─ Descobri... a arte, descobri o poema que não existe... nem podia existir, o poema absoluto. Nada me aflige mais do que a vida, nada me aflige meu amigo. Encontrei a mim mesmo e agora nada mais há, devo espiar minha culpa, a culpa por trazer à tona algo que não cabe aos humanos a menos que se homenageie o absurdo, ou, se cabe, que seja em um plano diferente e note que não falo plano superior, senão, apenas, diferente, que seja entre rochedos e campinas, onde poderei tornar-me uma cabeça de Medusa e congelar toda imagem pura e transformar toda palavra em uma imagem e toda imagem em uma palavra e onde nem Mallarmé sonhou, transfigurar toda arte, toda emoção em um poema. Eu desvendei este poema absoluto. Não... nada me aflige, pelo contrário, sinto apenas sede. Não! Apenas sinto o mundo, suas belezas e também suas guerras. Ouço o amor dos apaixonados, ouço também o desferir de cada golpe mortal das batalhas.
─ Estás falando muito rápido, não estou conseguindo acompanhar tuas idéias, mas sinto tua emoção e isto me alegra e me assusta, quero ajudá-lo, mas não sei posso, nem sei se você precisa de minha ajuda. Diga-me, meu amigo, o que posso fazer, pelo menos para dividir contigo o peso de tua, podemos chamar, descoberta?
─ Apenas leia o que está escrito nesta folha, não é mais do que uma linha, não tem nenhuma palavra que tu não conheças, tampouco está em uma língua estranha, mas nela está contida toda a Beleza. Meu tempo acabou, ousei a cometer o pecado desvendar um mistério vedado aos homens.
Estávamos sobre a Pont d’Austerlitz, peguei a folha, dobrada ao meio, era muito gasta, exalava cheiro de bolor e suor. Aquela folha pesou em minha mão como nada antes em minha vida, senti todo o peso de definições que nunca antes imaginei conseguir postular, senti o peso de todas as páginas em branco oprimindo o poeta e tremi. Não tive coragem de desdobrá-la, muito menos de profanar aquilo que ali estava escrito, mas sabia que segurava algo grandioso, mais grandioso do que jamais ousarei a me imaginar. Ele apenas olhou-me, nada disse e atirou-se nas águas do Sena. Nada fiz para impedi-lo e senti que nada deveria fazer. Coloquei a folha no bolso e saí dali sem ter rumo certo, modificado para sempre. Sabia que jamais teria coragem suficiente para tentar ler aquelas palavras. Em junho daquele ano conheci um escritor uruguaio cujo nome me escapa, mas lembro de estarmos em um café em Paris conversando sobre algo que poderia ser o poema latino na história da Morte, ou sobre os preparativos para a Copa do Mundo de futebol, quando ele avistou um seu amigo. Era Borges, acompanhado por outro senhor, a servir-lhe de guia. Sentaram-se conosco para tomar um café. Senti que se havia alguém com quem eu pudesse dividir o fardo que Paul me havia entregue, era com o argentino. Falei-lhe de minha amizade com Celan e como o vira morrer, óbvio que mostrou-se enfadado com aquela conversa desconexa, mas quando entreguei-lhe a folha, quis saber do que se tratava. Expliquei da maneira mais breve e direta que pude. Borges segurou a folha por alguns minutos e ficamos os quatro calados, esperando por um gesto seu. Perguntou-me se eu era capaz de ler para ele. Me amaldiçoei por ter encontrado alguém com coragem para desvendar aquele segredo, mas que não podia enxergar, senti toda a humilhação do mundo e nada pude falar. Ainda em silêncio devolveu-me a folha, levantou-se e antes de sair disse: “O dia que estiver preparado me procure, venha a sós. Nada tenho a perder, apenas espero a morte chegar, não a temo, mas não consigo antecipá-la. Não vejo e se ousar escutar o poema, talvez eu comece a vagar pela Argentina, como um mendigo e isto me basta, mantive-me conservador por muito tempo.”
Lembrei-me do conto O espelho e a máscara e duvidei de Roldo, qualquer um poderia ter lido a história e inventado aquilo. Ele me pareceu uma espécie de Forrest Gump italiano e, ainda sentindo a necessidade de matá-lo, intimei-o.
─ Tem a folha?
─ Sim.
─ Dê-me a.
─ Jovem, o que entende de arte, de beleza, de poesia?
─ Não vou fazer uma explanação de meus conhecimentos acerca da filosofia da arte, tampouco de um termo tão difuso quanto a beleza. Muitos e mais bem conceituados filósofos já discorreram sobre estes temas e apenas limito-me a encarar a arte como algo que só cabe em sua definição quando acompanhado por uma adjetivação tal que só possa ser empregada para ela e quanto ao belo, repudio tudo aquilo que é considerado belo pelos esnobes do mundo da arte. E a poesia, apenas sinto-a, ou não vale a pena.
Roldo Bonadiman não falou mais e como estivesse participando de um ritual, retirou solenemente a carteira do bolso do paletó e sacou uma folha muito velha e gasta. Entregou-me com reverência, foi até mamãe, abaixou-se para beijá-la. Ela despertou, se despediram e voltou a dormir. Não lembro se Roldo saiu da casa ou simplesmente desapareceu. Fiquei na sala, imóvel, até o amanhecer. Os primeiros raios de sol como que me resgataram de um estado de torpor e aproveitei as primeiras luzes do dia para desdobrar aquele pedaço de papel. Olhei e, como na história de Roldo, não havia mais do que uma única linha. Li e penso ter tentado pronunciar as palavras, mas senti-me abatido demais para poder abrir a boca e senti que estaria blasfemando violentamente se fizesse vibrar no ar o som daquele poema. Pensei em rezar, mas já havia esquecido todas as preces e já havia esquecido Deus, lembrei apenas de uma passagem na Bíblia onde ele fala a Moisés: “Não me poderá ver a face, porquanto homem nenhum verá a minha face e viverá.... tu me verás pelas costas; mas a minha face não se verá.” Se Deus existisse, eu tinha acabado de ver sua face, mas como ele não se pronunciou, pensei ter descoberto o sentido da vida. Nada fazia sentido. Julguei que o melhor a fazer era sair e jogar-me sob as rodas de um trem no primeiro trilho que encontrasse.
Escrevi estas minhas últimas palavras e deixei a casa. De minha boca nenhum som sairá enquanto permanecer nesta vida, mais nenhuma palavra ou imagem será desenhada por minhas mãos e ninguém verá este papel que trago desde Celan, Bonadiman, Borges e quantos outros ignoro, conquanto não possa destruí-lo. Se encontrar meio de por fim à minha existência, farei, se faltar-me forças é porque devo expiar minha culpa e vagar pelo mundo e se a loucura se apossar de minha mente, tomarei por um elogio da providência.

LM – 17/2/11
ANO NOVO
por Paulo Horn

Olhando no espelho depois de lavar o rosto pela manhã, Silvia enraiveceu com as marcas de olheira esculpidas em sua face que não estavam aí no ano passado. Às sete horas da manhã Dona Marta levanta-se e, pegando um copo de café recém coado pelo filho, vai para a janela da sala de estar e escondida atrás da fina cortina vigia a rotina da rua Plínio de Camaro. Ao voltar para casa após o ano novo, Marcos encontrou um sabiá morto na escada do segundo andar. Mariana esperara até a noite para desligar o telefone celular depois de ter passado o dia inteiro aguardando uma chamada de seu ex-namorado. O ex-namorado de Mariana passara o dia no trânsito engarrafado de volta para casa e pensava na mala por fazer para a viagem de amanhã, quando teria de passar na lavanderia e pegar as roupas deixadas depois do natal e correr para o aeroporto, torcendo para que o tráfego aéreo estivesse mais tranqüilo do que o de volta do fim de ano. O sol dentro da rua deixava os carros na rodovia com o motor fervendo e a fila pela marginal atravessava as muitas praias do litoral. Vivinho vendia laranjas para os motoristas enfadados enquanto sua irmã, a poucos metros oferecia balas e chicletes. O calor embaçara o primeiro dia do ano.
Na rua Plíno de Camaro as crianças corriam mais rápido nesta época. Normalmente deserta durante o tempo de escola, onde todos tinham vários cursos e os adultos pareciam ainda mais atarefados e estafados, a rua ganhava uma nova energia com o período de férias e com as visitas de parentes para as festas de fim de ano. Sueli veio passar o natal na casa da avó e descobriu que gostava de gatos, mas não podia chegar muito perto por que além da alergia que também agora descobrira, os bichos da vó haviam acabado de ter filhotes e não se deve perturbar os recém nascidos por pelo menos três semanas. Na parte de trás da casa da vó de Sueli morava Valéria, garota de vinte e poucos anos que veio para a cidade para estudar e, com as despesas de livros e o salário baixo de atendente em um salão de beleza próximo, alugou um quarto com banheiro na casa da viúva, que ficou feliz de ter alguém por perto para não ter que jogar fora o café, uma vez que nunca soube fazer pouco. Sueli ficou encantada com Valéria e toda vez que dava meio dia saia em disparada para frente de casa para receber a moça e perguntar se podia ir com ela ao salão, ver as cores malucas que dava para criar misturando esmaltes.
Marcos pegou com um saco plástico o pássaro morto na escada e o fedor putrefato do bicho lhe deu náuseas. A casa ficara trancada por uma semana e o cheiro concetrara na escada. Abriu as janelas e pegou um esfregão na lavanderia, passando muita água sanitária para tirar o cheiro de morte da escada. Poucas horas dali sua irmã traria o gato para passar uns tempos na casa já que o bicho não havia se acostumado com a sacada do apartamento, tendo pulado do primeiro andar e quebrado um dente numa perigosa aterrissagem de cara, comprovando para os transeuntes que nem todos os gatos caem de pé. Com o gato de dente quebrado no colo sua irmã tentou convencê-lo de que ele ficaria melhor em uma casa com quintal e ganhou o argumento com a interferência da ex-namorada de Marcos que achou o bicho fofinho. O gato era uma bola de pêlo gorda e preta, com um tamanho desproporcional e temperamento levemente suicida. O saco com o pássaro morto levou para fora, junto com outros sacos de lixo para que o caminhão levasse durante a noite. Botou junto com os orgânicos.
Juliana começou a ler Ulisses quando tinha dezenove anos. Mais um ano se passou e ela não saiu da página 134, a mesma de quatro anos atrás, quando exausta com seus olhos e confusa com a mistura de suas idéias e com a confusa mente por trás do livro, deixou-o com uma fita verde marcando a leitura numa estante de seu quarto e pegou uns dias de folga das leituras. Agora, na limpeza anual de papéis e na organização da estante, vendo o livro imóvel no mesmo lugar teve certeza de que nunca terminaria este livro. Sérgio recebera um vale-livro de presente de sua esposa no natal e tinha muitas dúvidas. Primeiro perguntava-se se um vale livro não era uma constatação de que mesmo casados ha tanto tempo ela não sabia nada sobre seus gostos. Ou então poderia ser um caso de desapego depois de tanto tempo de casado, de não agüentar mais ele a ponto de não dispensar esforços nem para escolher um título qualquer. E mais, o que compraria?
Mariana não desceu para o jantar e só quando teve certeza que todos já haviam se recolhido aos seus quartos foi buscar algo para matar a fome que acompanhou sua frustração no primeiro dia do ano. Depois do encontro na praia, na véspera do ano novo teve certeza que tudo poderia voltar a ser como há tempos não era. Simples. Sorriria com gosto pelos momentos vindouros, mas isso foi antes do ano novo. Não recebera nenhuma ligação desde a virada do ano. Um pedaço de torrada e um copo de água mineral com gás depois e a fome também havia lhe deixado sozinha com milhares de idéias. Nenhuma boa. Pegou o celular e mandou uma mensagem de feliz ano novo para sua tia, pois ela nada tinha culpa das expectativas frustradas que vieram com o dia primeiro. Puxou da gaveta um bloco de papel canson e uns quantos giz de cera. Desenhou o ano novo em um azul escuro como o mar na noite. Molhou um pouco as cores e passou o dedo, amassando o giz contra o papel. A tinta ficara impregnada no dedo e, passando nas bochechas como uma pintura de guerra, preparou-se para mais um tempo de batalhas. Armar-se-ia contra o ano, talvez amanhã.
Dona Marta cozinhou arroz e feijão e um pedaço de carne em uma panela de pressão. Seu filho não viria para o almoço, mas a comida feita ficaria para a janta. Assistiu à reprise dos especiais de fim de ano e depois a novela da tarde. Preferia a movimentação pela manhã, quando os carteiros faziam entregas e as crianças corriam pela rua em bando. Gostava de ver os jovens, aqueles que há dias eram crianças, hoje tentando se comportar como adultos, andando de mãos dadas; gostava de ver as indiscrições, as brigas de casais, gostava de ver a vida dos outros pela janela. Tinha um único outro grande amor: um pé de carambola que sua avó havia plantado naquele terreno quase oitenta anos antes. Durante um tempo Dona Marta ficou preocupada com o ataque das crianças ao pé na época de fruta e comprou um cachorro grande, destes policiais para tomar conta do terreno. Comprou do filho de Dona Eulália que era veterinário e trabalhava em um Pet Shop no centro. No quarto mês deu o bicho para uma irmã que morava no sitio, depois de ver várias vezes o cachorro mijar no pé de carambola.
O gato da irmã de Marcos não saia mais da escada e isso preocupava o rapaz. Era sinal de que o pássaro morto ainda não havia saído de sua casa, e o gato sentia isso. No lugar onde achou a carcaça do sabiá ficara uma leve mancha e toda vez que Marcos tocava o gato da escada via de relance uma forma de bico de pássaro que cantava com a corrida do bicho. Silvia passou mais maquiagem do que de costume e saiu apressada para o ponto de ônibus. Se perdesse o das 7 horas chegaria atrasada no primeiro dia de trabalho do ano e começar com o pé esquerdo era prenúncio de maus ventos para um ano que tinha começado já mofando. Esquecera das rugas, criando mais e mais com as preocupações do dia a dia. Na escada da casa de Marcos o gato dormia sob a sombra de uma samambaia pendurada por sua ex-namorada alguns meses antes. Dentro do vaso o rapaz encontrou o que foi o ninho do pássaro morto, ainda com um pedaço da casca de ovo de onde ele surgiu. Pelo vão do telhado volta e meia entrava algum pássaro e Marcos agora considerava colocar um forro para que não houvesse mais ninhos nem bichos mortos quando chegasse a casa.
O ex-namorado de Mariana estava no convés do navio tomando cerveja esperando pela saída do cruzeiro. Meses atrás seus pais haviam decidido não alugar uma casa na praia como de costume e ao invés disso economizaram uma quantia para levar os filhos em um cruzeiro de sete dias pela costa brasileira. Dali, Mariana era a areia da praia já longe e ele se sentia como a maré que sempre voltava até ela, mas não tinha desejo de ficar. Dividindo o quarto com sua irmã, passou os primeiros dois dias navegando sem nenhuma parada. Durante o dia passeou pelo navio, entrando em alguns restaurantes para pegar bebida. Almoçou perto da piscina junto com os pais e as irmãs, mas não gostou de ver aquele monte de gente de molho desde a manhã. Fazia tempo que não via areia e não havia sinal de telefone para ligar para Mariana. Talvez melhor. Perdeu trinta reais no cassino aquela noite. Juliana já começava a encaixotar suas coisas para a mudança. Sua colega de apartamento havia terminado a faculdade e agora sozinha já não podia bancar o aluguel. Depois de conversar com três pessoas, decidiu que era melhor alugar uma quitinete perto da faculdade para não correr o risco de ter que morar com alguém tão cheio de manias como ela mesma. Tinha dividido suas coisas em quatro grupos fundamentais. Primeiro encaixotou todas as roupas e acessórios que tinha, deixando uma pequena bolsa preparada perto do colchão com as roupas que usaria nos próximos dois dias (uma calça jeans desbotada e uma camiseta roxa com a estampa florida para o primeiro dia e um vestido listrado preto e amarelo para o segundo). A segunda coisa que encaixotou foram os dois aparelhos de som que tinha (uma maletinha bege que aberta virava uma vitrola já com amplificador que havia ganhado quando fez nove anos de sua mãe e um aparelho de cd comprado com o dinheiro de uma série de correções de monografias que atrasou em um ano a sua própria formatura). Depois vieram os utensílios domésticos, como panelas e partos, talheres copos, vasos e amontoado ao meio (pois uma nova categoria não se sustentaria sozinha dentro de uma caixa) os poucos quadros e pôsteres que tinha como decoração. Pro fim vieram os livros, organizados através de sua nomenclatura definida pelas normas técnicas. Deixara de fora da caixa apenas o Ulisses e à noite encarava a edição às escuras.
Sérgio perdeu o prazo para trocar o vale-livro, mas o manteve guardado dentro de sua carteira do mesmo jeito que manteve a dúvida em sua cabeça pelos meses seguintes. Valéria tingiu o cabelo de vermelho por meia hora e depois se arrependeu. Teve que esperar uma semana insatisfeita até que o movimento no salão diminuísse para voltar à cor anterior. Sueli queria pintar seu cabelo também, mas a vó não deixou. Imagine a neta chegando na casa da filha com o cabelo vermelho como um pica-pau. Mas Sueli sonhava que tinha o cabelo vermelho como o fogo, assim como Valéria e as duas saiam de mãos dadas pelo céu, substituindo o sol e trazendo o amanhecer. A mãe de Sueli aparecia todo fim de semana para ver a filha e descansar da correria de começo de ano. Trabalhava em uma panificadora e tinha os braços cansados de amassar pão todo dia. Sentava-se sempre numa poltrona antiga na casa da mãe, uma com braços acolchoados bem em frente à janela e dali por várias vezes observou a mãe a observar a rua. De vez em quando se sentava à sombra do pé de carambola para ver a filha correndo pela rua com as outras crianças e recordava que quando criança morria de vontade de brincar naquela árvore, botar um balanço ou simplesmente subir em seus galhos para lá de cima ver melhor os pássaros baterem as asas, mas pela obsessão da mãe nunca pode chegar perto do pé. Uma vez, quando mal havia aprendido a andar de bicicleta e suas pernas ainda não tinham firmeza no pedalar, perdeu o controle em uma pedrinha e foi bater de frente na árvore. Ficou três dias de castigo, sem brincar com as outras crianças, lavando a louça e estudando matemática na sala onde a mãe podia vigiar. Vingou-se comendo escondida as carambolas que caíram na batida.
Tudo parecia diferente neste começo de ano, exatamente como pareceu diferente no começo do ano anterior e do outro ainda. A Rua Plínio de Camaro aos poucos foi retornando à morosidade com a chegada de fevereiro. Todos corriam com seus medos e lembranças e com a espera de que o ano ainda poderia melhorar ou ainda voltar a ser o que era. Todos sentiam saudade, vontade, desejo de algo e corriam tentando descobrir do que. Todos se escondiam um pouco mais atrás de livros e sorrisos; da velocidade do dia que reclamavam uns para os outros, mas que a noite deitados em suas camas com a preocupação que vem do silencio, davam graças a deus pelo tempo que não falha. Apenas o gato da irmã de Marcos continuava deitado na escada onde o pássaro do ano novo pousou. Era um bom ano para descansar.

Thursday, February 10, 2011

Meu amigo, o Batman

Não gosto de botecos, muito menos daqueles com chão sujo e não fosse pelo preço da cerveja, jamais os freqüentaria. É o ponto de partida da noite e o de regresso pela manhã de toda sorte de seres: bichas, lésbicas, putas, estudantes pequenos burgueses querendo dar uma de descolados, poetas, funcionários públicos do décimo escalão e super heróis. Até gosto de presenças tão ecléticas, mas tenho especial antipatia por super heróis. Sempre tem um disposto a vir na direção da gente com as mais inconvenientes propostas. O último foi o Batman, com máscara, capa preta, cinto de utilidades e tudo.
Como já disse, o preço da cerveja motivou minha escolha e a mesa do fundo dava um certo isolamento, tão essencial ao ato de escrever a respeito da condição humana e suas angústias. Trabalhava seriamente com a discrição devida aos gênios em ação, amparado pela garrafa e entrincheirado na mesa. Qualquer um com bom senso suficiente teria percebido a gravidade do momento e ter-se-ia posto distante e era exatamente isto o que eu mais queria. Minhas precauções foram inúteis, mas perdoei a primeira interrupção por tratar-se de meu velho amigo Werner: um importantíssimo militar, preterido nas promoções por uma grande conspiração política e que por isso ainda ostenta a divisa de soldado. Meu amigo soldado, sempre foi um bom companheiro de copo e até não é mau sujeito, mas está sempre de taciturno e preocupado com a possível presença dos seus perseguidores. Ocultos sob a despretensão de uma mesa de bar, já tratamos dos mais importantes assuntos do país naquele boteco. De nossas conversas já saíram até planos, perfeitamente factíveis, de derrubar o governo e instaurar o mais puro comunismo, além de outros, menos importantes, como criar um site que divulgaria documentos secretos do governo estadunidense.
Na noite em questão, estávamos traçando os rumos da América Latina, tão cara às nossas preocupações quando o Batman nos interrompeu. A julgar pelo heróico entusiasmo, poderia afirmar que estava embriagado, mas depois de descobrir sua identidade, percebi que qualquer estado de espírito era possível ao mascarado.
— Eu te conheço! Eu te conheço! — Veio até nossa mesa exclamando e apontando para mim
— Eu também te conheço, você é o Batman.
— Tu é o Trezinni, da garagem, eu sou o Oliveira, filho do Oliveira.
Fui atingido pelo olhar de reprovação reprovação, pois estávamos salvando o governo da Bolívia de um golpe urdido por Washington.
— Aaahhh! O Oliveira, filho do Oliveira. Logo te reconheci.
— Esse cara é meu amigo. — O Batman apontava para mim enquanto segurava o braço de Werner. — Nós aprontamos poucas e boas no exército, ele também era amigo do meu pai.
— É, eu era.
— Mas amigão, eu tenho que ir. Você viu minha foto no jornal? Fui eu quem paralisou a sessão da Câmara ontem, antes de ser levado pela polícia, mas eles não vão me impedir assim, eu tenho um plano.
E pelo brilho no olhar, perceptível por trás da máscara, era de se supor que ele tinha mesmo um plano grandioso. Ou tava chapado. Pobre alma, ingênuo sonhador, imaginando que sua fantasiosa intervenção pudesse promover qualquer mudança no cenário da cidade. No máximo conseguiu chamar a atenção de uma imprensa faminta por factóides, paralisar a sessão da Câmara por uns minutos e rivalizar em comicidade com o festival de palhaçadas promovidas por nossos políticos.
— Agora que eu sei que tu tens amigos importantes na Liga da Justiça, nossa tarefa de implantar uma sociedade alternativa pode ficar mais fácil. — Ironizou meu amigo.
Amigos na Liga da Justiça. Ele continuou por um bom quarto de horas a me troçar, insinuando que talvez eu também tivesse uma identidade secreta, o Super-Homem, ou quem sabe o Robin, talvez o Lanterna Verde.
Sobre meu sonhador amigo super herói não ouvi falar mais nada, a não ser que estava trabalhando em uma loja do centro, anunciando as promoções, sempre mascarado. Não sei se isto faz parte do plano ou se fez um acordo com seus inimigos. Enquanto isto eu e meu amigo soldado, verdadeiros revolucionários, continuamos debruçados sobre a mesa do fundo, em nosso QG provisório: estamos arquitetando um plano para re-estatizar a Vale do Rio Doce e explodir o Cristo Redentor.

Sunday, February 06, 2011

Terminal

Anunciaram, de pronto, sem mesuras de julgamento, minha execução: senti todo o alívio possível de ser sentido. Imaginava-me jovem, pouco mais que um terço de vida, mas, herança dos suicidas da família, obsedava-me não, obcecava-me a morte, o milagre da morte, minha única e mais cara certeza. Da origem, trago apenas lembranças vagas: um irmão pendurado pelo pescoço, um tio botando cicuta nas tripas, a mãe se atirando da ponte e alguns nomes de lugares. Lembro de alguém ter mencionado Londres; outros, jurando intimidade, afirmavam jamaicano. Sem o timbre do Estado no papel, poderia ser de qualquer lugar: já fui de Bonn, Paissandu, Buffalo, Dublin, nomes de cidades, agora, invisíveis.
Também incerto era meu nome. Já fui Jonh, Alfredo, Etcheverria, Ernest, Haward, Te-Hoba, Rigel. Qualquer um poderia pôr-me em conta de louco, qualquer um, bastava trazer os bons costumes no bolso e encontraria um pervertido adorador da morte, profanador de cadáveres. Soube-me homem, no amor inumano, demasiado humano, sem espírito, com alma. De frieza austera, mas sem a pecha da reprovação; a mais autentica combinação de cores, partindo do arroxeado nos lábios à pureza da palidez; minha total liberdade para o amor eterno das carnes, enquanto não se consumiam pelos vermes, eis as lembranças dos meus vícios-amores e a causa da minha condenação, libertação. Possuí, virulento de paixão, muitos corpos, com fúria, tesão, mas o amor destinei a apenas uma, indesejada das gentes que não conhecem sua verdadeira face.
Eram soldados, havia patentes, ouvia ordens para os preparativos e descobri fuzilamento. Não pensei e, se para ter o que falar, ou gabolice, creio, ter gritado, com contenção calculada, medindo as palavras: minha irmã virá me buscar. Arrependi-me. Ela viria de qualquer maneira, naquele muro, daqui a dez anos, pela fome, por vícios, pestes, susto, mas viria e senti como se estivesse blasfemando. Não me bastava o amor? Tinha de tripudiar sobre os cadáveres respirante daqueles amedrontados? Mudei minha fala, vibrando, então, minha boca completa de dentes, com toda a voz reprimida em anos de representação, e ordenei um executem-me logo. Trago gosto, alívio e, do feito, alegria, para parecer heróico.
Olhei, como me ensinaram e nunca tive vontade, fixamente, nos dezesseis olhos por trás dos fuzis e percorri matizes desconhecidos, repletos de novidades, matizes de azul, castanho, negro e, apesar do descobrimento, da contemplação do que poderia ser a outra face da minha amada, não consegui enxergar-me naqueles pequenos lagos salgados. Tentei aos bocaditos, um pouco, um fiapo, em cada um; pontos dispersos, sem um inteiro, fragmentos. Faltava imagem, busquei palavra, um nome familiar, uma carta, um bilhete deixado no vagão do trem, e eu também não estava lá. Tinha apenas, melhor, a segurança da morte, momento aziago, veio um calafrio, arrepio de delírio e fraqueza, que se fez insistente quando sumiu o chão da minha certeza: tinha ciência da morte, mas, assentara, cruel, a dúvida: e da finitude?
A voz do comandante do pelotão, naquele instante, passou para o campo das abstrações: era apenas um leve brisa açoitando, com delicadeza imprópria, arbustos semi-secos, prestes a se desfolharem no outono. Perdi a capacidade de compreender a fala dos homens, também a minha. Existiam apenas as coisas, privadas de nomenclaturas. Tentei ordenar rapidez na minha execução, talvez tenha dito isto mesmo, ou balbuciado, quase. Não eram mais palavras, eram, antes, pedaços de ar carregados com sombras, mãos, suores, pedras, vindas de um jardim ancestral, anterior aos caminhos possíveis e antes de serem sombras, mãos, suores ou pedras. Pensei em rezar, para quem? Extinguiram-se as palavras e já não mais sabia do amor, da fé, de lembranças, infinito, finitude, dúvida.
texto de Paulo Horn

MODELO PARA AMAR

Encontrei no sofá tudo aquilo que perdi em você.
Poemas estúpidos à noite,
rugindo pela tevê
o som que me afasta aos poucos,
tudo vai sumindo
entre goles de vodca com suco de manga

e o sol bem no alto de um domingo qualquer, comigo pensando em você descendo o seu prédio e eu do outro lado da rua, não sei se você me viu e se me viu não sei se não quis me olhar ou se pensou ser melhor não me olhar e falar com outras pessoas, sair pelos ladrilhos da calçada caminhando sem se virar para trás. Mas eu sentado aqui, no canto do bar percebi que fumar já não me ajudava e que no dia seguinte eu teria a certeza de que cigarros de menta não têm o mesmo gosto quando não vem da tua boca. Mesmo assim eu trago e bebo, bebo e penso e lembro; lembro que você estava aqui discutindo sobre tudo, sobre arte, sobre música, sobre deus e sobre eu e você e minha barba e seus óculos e sobre o tamanho dos teus peitos e a cor da minha lente de contato. Tudo já estava ali, neste mesmo lugar, no canto da mesa do bar com a cerveja e as páginas do jornal amareladas que eu não tinha vontade de ler, mas que por alguma razão pareciam sempre puxar meus olhos e estava bem grande ali escrito catástrofe e eu pensava sim, é isso mesmo, tudo vai desabando, encharcando e as paginas virando com o vento e sempre a catástrofe aparecendo, e eu pedi o cardápio para ver se outras palavras apareciam e encobriam a idéia fixa de você.
Decidi que deveria começar a mudar meus hábitos, ou então deveria contornar o tempo, o que fosse mais fácil. Vamos ver, se eu voltasse no tempo ao momento em que te vi entrando pela porta do bar e sentando no balcão ao lado dos bebuns habituais, eu deveria ter me embriagado ainda mais para não te perceber, ou talvez eu devesse ter sido direto, levantado e ido falar com você, deixado você perceber que na verdade eu estava bêbado e que quanto mais eu bebo mais confiante eu fico, mesmo que eu saiba que depois de uma rejeição sua eu ficaria muito triste e talvez eu nem voltasse para minha mesa e agora me lembrei que estavam todos lá, o velho, o novo, aqueles que são eu e os que eu não conheço, e o cardápio eu sei de cor, mas mesmo assim não consigo decidir se tomo uma cerveja ou peço um café. Já bate as seis e daqui a pouco chega o velho e o novo, os que são eu e os que eu não conheço e eu ainda não decidi o que tomar, se vou comer, se vou ficar, se quero fumar e se quero o sabor de menta dos teus beijos nos beijos de qualquer uma.

Percebi que era um modelo para amar quando estava bêbado.

Mas assim, ao cair da tarde eu já penso que deveria pegar um animalzinho para me fazer companhia nestas horas tristes, neste sofá caseiro. Sim é isso, vou buscar um gato que é um bicho triste, um gato velho de preferência que não goste de meninices, de correrias, de bolinhas de papéis nem de solas de sapato e que fique deitado ronronando enquanto eu tomo vodka com o suco que tiver na geladeira. Pois bem, me visto rápido e saio, penso, mas será que devo pegar mesmo um gato que é um bicho que muito se assemelha à mulher, que é esquivo e curvo e fino e forte e mentiroso e fruído e franco e que pode esfregar a cabeça na minha mão sem ao menos gostar de mim. Talvez seja melhor eu não pegar bicho nenhum e não compartilhar o meu sofá, nem minha solidão nem minha tristeza, nem muita embriaguez nem esperança. Mas sei que sou ingênuo, sou um modelo para amar e por isso sei que mesmo que não queira gato nenhum vou atrás de uma mulher para cuidar de mim, mesmo que no final ela apenas me afunde depois de breves momentos de beleza. Sim, talvez seja essa a sina de ser um modelo para amar, ficar dependurado em molduras, galerias, telas de computador, esmaltes de unha, camisetas de garotas, carteiras, tênis, livros, lábios, lustres, listras, passos, poças, postes, cruzes, cristos, cistos, sapos, sacos, simples, sacos, velas, bolos, bolsas, beijos, beijos, beijos.
Talvez este modelo para amar deva, seja... eu.

Eu vi um cone quando sai de casa. Vi também um pássaro, um carro, um ponto, uma nuvem, uma volta, uma coisa, um coiso, um caso, mas nada de um modelo para mim. Meu modelo percorria o infinito das coisas escondidas e bebidas. O velho me ligou dizendo que ia para o bar e que também iriam o novo e aqueles que eu não conheço e eu perguntei daqueles que são eu, mas ele não soube me responder, disse que não falava comigo e com eles desde sábado e eu disse que sábado foi ontem, mas não, sábado foi sábado e hoje o velho está mais velho, o novo não está mais novo e todos que eu não conheço eu conheço um pouco e aqueles que são eu mesmo sumidos continuam sendo eu. Sentei no meu canto, com o velho e outro velho, pedi minha cerveja e fiquei ali escutando as peripécias da vida de aposentado dos velhos e pensando nas peripécias da vida de velho dos jovens que também sou eu, sentados em bares, tomando cervejas, comendo bolinhos, fugindo do sol, olhando as nuvens, fumando cigarros, lendo romances, perdendo romances, lembrando romances, romanceando lembranças com o coração partido na ponta da vista. Na ponta do peito percebi que a vida dos velhos era quase como a vida daqueles que são eu e a minha, só que eles dispõe do tempo como arrogância, como pressuposto para soltar um eu já te avisei, eu sei por que já vivi, mesmo que seja apenas para garantir a última palavra, um ar de sobriedade que pode-se perceber ser uma mentira olhando fundo nos olhos dos velhos, por entre as rugas e vendo fundo, longe, mas intacto o coração partido de toda a juventude do mundo.
Um modelo para amar não deveria passar tanto tempo sozinho numa mesa de bar, numa cama, num sofá, numa praia, numa pedra, numa cama, numa cama, numa sorte, numa tarde, numa cinza, numa, numa, numa. Acendi um cigarro e para a felicidade do velho e do velho apaguei antes de chegar na metade, pois acho que meu corpo não agüenta mais, meu estômago se revira aos avessos e eu tomo um gole por cima pra tirar o gosto, mas nada dele sair, nada do cigarro contorcido no cinzeiro virar cinzas, do dia acinzentar e cair a chuva para refrescar e me fazer deitar no sofá de casa, assistindo tevê sem me importar com canal; com bananas amassadas e picadas e batidas no liquidificador com vodka, leite e suco de manga, com bebedeiras, brigas, braços, abraços, com falta, com fita, flauta, fórmulas para completar o modelo que sou eu. Mas eu não estou no sofá e sim no canto do bar, com o velho e o velho e o novo recém chegado, com aqueles que não conheço e sentindo falta daqueles que são eu. É bom lembrar ou explicar que aqueles que são eu também se mostram como modelos para amar, cada um ao seu modo, mas indiscerníveis como grupo. A ubiqüidade com que se dão os movimentos e pensamentos e anseios e desejos e fomentos até famintos cairmos pelos dias, pelas valas, pelos ventos, pelo tempo, pelos tapas, pelas taras define nossa condição de modelos para amar sem amor nos contentos, sem contento nos caminhos, sem caminho, sem carinho, sem calmante, sem corante, sem cor, como uma pintura descascada na casa do coração.
Pois bem! Cansado como estou decidi ficar no bar, pois mesmo em casa me manteria maquinando formas de auto-sabotagem que me conduziriam ao infinito de coisas escondidas e bebidas, de modelos para amar próximos que não aceitam que talvez eu seja o modelo para amar perfeito para combinar com ela e montar um par nas calçadas do acaso confuso; talvez eu deva, eu seja e você saiba e seja e deva dizer que não devemos ser modelos um do outro, e assim saímos tangenciando a própria tangente do destino, do acaso e dos casos que não casam, dos amores não amados e dos amados não amores. Gostaria agora de ter um pouco de menta nos meus lábios. Estraçalhado como um bom modelo para amar, insurgi-me contra todas as garotas belas que me rejeitam e, imponente em minha embriaguez, decidi que conquistaria a garota linda sentada do outro lado do bar, mandando-lhe um bilhete com um poema estúpido à noite. E como seu sorriso foi uma arma em minhas mãos, decidi que o flerte era meu campo de batalha e fiquei com toda a importância, com toda a vantagem do seu sorriso ao meu bilhete em mãos, apenas esperando que ela passasse em minha frente para poder dar a cartada, a grande cartada de um amor louco, burro e bêbado. E ela passou magnífica e eu corri; corri entre as paredes de pessoas atrás de você, corri na chuva até seu carro somente para ter minha armada destroçada pela sua rejeição, sincera e cortante; sincera e reinante. Terminei a noite sentado no sofá, pensando nos poemas que disse, nos cortes que tive, nas máscaras que usei, nas mudas que plantei, nas plantas que pisei correndo no encalço daquela moça, apenas para ficar tão pisoteado como pisoteei.
Suco de manga com vodca não dá um bom café da manhã, por isso eu misturo café com cachaça e vejo que trava tudo no alto da garganta, pior do que o cigarro de menta que não veio dos lábios dela.

Percebi sóbrio que sou um modelo pra amar melancólico. E por isso eu bebo e modelo o amor sem perceber que ele me modela mais e mais e mais.