Thursday, February 17, 2011

ANO NOVO
por Paulo Horn

Olhando no espelho depois de lavar o rosto pela manhã, Silvia enraiveceu com as marcas de olheira esculpidas em sua face que não estavam aí no ano passado. Às sete horas da manhã Dona Marta levanta-se e, pegando um copo de café recém coado pelo filho, vai para a janela da sala de estar e escondida atrás da fina cortina vigia a rotina da rua Plínio de Camaro. Ao voltar para casa após o ano novo, Marcos encontrou um sabiá morto na escada do segundo andar. Mariana esperara até a noite para desligar o telefone celular depois de ter passado o dia inteiro aguardando uma chamada de seu ex-namorado. O ex-namorado de Mariana passara o dia no trânsito engarrafado de volta para casa e pensava na mala por fazer para a viagem de amanhã, quando teria de passar na lavanderia e pegar as roupas deixadas depois do natal e correr para o aeroporto, torcendo para que o tráfego aéreo estivesse mais tranqüilo do que o de volta do fim de ano. O sol dentro da rua deixava os carros na rodovia com o motor fervendo e a fila pela marginal atravessava as muitas praias do litoral. Vivinho vendia laranjas para os motoristas enfadados enquanto sua irmã, a poucos metros oferecia balas e chicletes. O calor embaçara o primeiro dia do ano.
Na rua Plíno de Camaro as crianças corriam mais rápido nesta época. Normalmente deserta durante o tempo de escola, onde todos tinham vários cursos e os adultos pareciam ainda mais atarefados e estafados, a rua ganhava uma nova energia com o período de férias e com as visitas de parentes para as festas de fim de ano. Sueli veio passar o natal na casa da avó e descobriu que gostava de gatos, mas não podia chegar muito perto por que além da alergia que também agora descobrira, os bichos da vó haviam acabado de ter filhotes e não se deve perturbar os recém nascidos por pelo menos três semanas. Na parte de trás da casa da vó de Sueli morava Valéria, garota de vinte e poucos anos que veio para a cidade para estudar e, com as despesas de livros e o salário baixo de atendente em um salão de beleza próximo, alugou um quarto com banheiro na casa da viúva, que ficou feliz de ter alguém por perto para não ter que jogar fora o café, uma vez que nunca soube fazer pouco. Sueli ficou encantada com Valéria e toda vez que dava meio dia saia em disparada para frente de casa para receber a moça e perguntar se podia ir com ela ao salão, ver as cores malucas que dava para criar misturando esmaltes.
Marcos pegou com um saco plástico o pássaro morto na escada e o fedor putrefato do bicho lhe deu náuseas. A casa ficara trancada por uma semana e o cheiro concetrara na escada. Abriu as janelas e pegou um esfregão na lavanderia, passando muita água sanitária para tirar o cheiro de morte da escada. Poucas horas dali sua irmã traria o gato para passar uns tempos na casa já que o bicho não havia se acostumado com a sacada do apartamento, tendo pulado do primeiro andar e quebrado um dente numa perigosa aterrissagem de cara, comprovando para os transeuntes que nem todos os gatos caem de pé. Com o gato de dente quebrado no colo sua irmã tentou convencê-lo de que ele ficaria melhor em uma casa com quintal e ganhou o argumento com a interferência da ex-namorada de Marcos que achou o bicho fofinho. O gato era uma bola de pêlo gorda e preta, com um tamanho desproporcional e temperamento levemente suicida. O saco com o pássaro morto levou para fora, junto com outros sacos de lixo para que o caminhão levasse durante a noite. Botou junto com os orgânicos.
Juliana começou a ler Ulisses quando tinha dezenove anos. Mais um ano se passou e ela não saiu da página 134, a mesma de quatro anos atrás, quando exausta com seus olhos e confusa com a mistura de suas idéias e com a confusa mente por trás do livro, deixou-o com uma fita verde marcando a leitura numa estante de seu quarto e pegou uns dias de folga das leituras. Agora, na limpeza anual de papéis e na organização da estante, vendo o livro imóvel no mesmo lugar teve certeza de que nunca terminaria este livro. Sérgio recebera um vale-livro de presente de sua esposa no natal e tinha muitas dúvidas. Primeiro perguntava-se se um vale livro não era uma constatação de que mesmo casados ha tanto tempo ela não sabia nada sobre seus gostos. Ou então poderia ser um caso de desapego depois de tanto tempo de casado, de não agüentar mais ele a ponto de não dispensar esforços nem para escolher um título qualquer. E mais, o que compraria?
Mariana não desceu para o jantar e só quando teve certeza que todos já haviam se recolhido aos seus quartos foi buscar algo para matar a fome que acompanhou sua frustração no primeiro dia do ano. Depois do encontro na praia, na véspera do ano novo teve certeza que tudo poderia voltar a ser como há tempos não era. Simples. Sorriria com gosto pelos momentos vindouros, mas isso foi antes do ano novo. Não recebera nenhuma ligação desde a virada do ano. Um pedaço de torrada e um copo de água mineral com gás depois e a fome também havia lhe deixado sozinha com milhares de idéias. Nenhuma boa. Pegou o celular e mandou uma mensagem de feliz ano novo para sua tia, pois ela nada tinha culpa das expectativas frustradas que vieram com o dia primeiro. Puxou da gaveta um bloco de papel canson e uns quantos giz de cera. Desenhou o ano novo em um azul escuro como o mar na noite. Molhou um pouco as cores e passou o dedo, amassando o giz contra o papel. A tinta ficara impregnada no dedo e, passando nas bochechas como uma pintura de guerra, preparou-se para mais um tempo de batalhas. Armar-se-ia contra o ano, talvez amanhã.
Dona Marta cozinhou arroz e feijão e um pedaço de carne em uma panela de pressão. Seu filho não viria para o almoço, mas a comida feita ficaria para a janta. Assistiu à reprise dos especiais de fim de ano e depois a novela da tarde. Preferia a movimentação pela manhã, quando os carteiros faziam entregas e as crianças corriam pela rua em bando. Gostava de ver os jovens, aqueles que há dias eram crianças, hoje tentando se comportar como adultos, andando de mãos dadas; gostava de ver as indiscrições, as brigas de casais, gostava de ver a vida dos outros pela janela. Tinha um único outro grande amor: um pé de carambola que sua avó havia plantado naquele terreno quase oitenta anos antes. Durante um tempo Dona Marta ficou preocupada com o ataque das crianças ao pé na época de fruta e comprou um cachorro grande, destes policiais para tomar conta do terreno. Comprou do filho de Dona Eulália que era veterinário e trabalhava em um Pet Shop no centro. No quarto mês deu o bicho para uma irmã que morava no sitio, depois de ver várias vezes o cachorro mijar no pé de carambola.
O gato da irmã de Marcos não saia mais da escada e isso preocupava o rapaz. Era sinal de que o pássaro morto ainda não havia saído de sua casa, e o gato sentia isso. No lugar onde achou a carcaça do sabiá ficara uma leve mancha e toda vez que Marcos tocava o gato da escada via de relance uma forma de bico de pássaro que cantava com a corrida do bicho. Silvia passou mais maquiagem do que de costume e saiu apressada para o ponto de ônibus. Se perdesse o das 7 horas chegaria atrasada no primeiro dia de trabalho do ano e começar com o pé esquerdo era prenúncio de maus ventos para um ano que tinha começado já mofando. Esquecera das rugas, criando mais e mais com as preocupações do dia a dia. Na escada da casa de Marcos o gato dormia sob a sombra de uma samambaia pendurada por sua ex-namorada alguns meses antes. Dentro do vaso o rapaz encontrou o que foi o ninho do pássaro morto, ainda com um pedaço da casca de ovo de onde ele surgiu. Pelo vão do telhado volta e meia entrava algum pássaro e Marcos agora considerava colocar um forro para que não houvesse mais ninhos nem bichos mortos quando chegasse a casa.
O ex-namorado de Mariana estava no convés do navio tomando cerveja esperando pela saída do cruzeiro. Meses atrás seus pais haviam decidido não alugar uma casa na praia como de costume e ao invés disso economizaram uma quantia para levar os filhos em um cruzeiro de sete dias pela costa brasileira. Dali, Mariana era a areia da praia já longe e ele se sentia como a maré que sempre voltava até ela, mas não tinha desejo de ficar. Dividindo o quarto com sua irmã, passou os primeiros dois dias navegando sem nenhuma parada. Durante o dia passeou pelo navio, entrando em alguns restaurantes para pegar bebida. Almoçou perto da piscina junto com os pais e as irmãs, mas não gostou de ver aquele monte de gente de molho desde a manhã. Fazia tempo que não via areia e não havia sinal de telefone para ligar para Mariana. Talvez melhor. Perdeu trinta reais no cassino aquela noite. Juliana já começava a encaixotar suas coisas para a mudança. Sua colega de apartamento havia terminado a faculdade e agora sozinha já não podia bancar o aluguel. Depois de conversar com três pessoas, decidiu que era melhor alugar uma quitinete perto da faculdade para não correr o risco de ter que morar com alguém tão cheio de manias como ela mesma. Tinha dividido suas coisas em quatro grupos fundamentais. Primeiro encaixotou todas as roupas e acessórios que tinha, deixando uma pequena bolsa preparada perto do colchão com as roupas que usaria nos próximos dois dias (uma calça jeans desbotada e uma camiseta roxa com a estampa florida para o primeiro dia e um vestido listrado preto e amarelo para o segundo). A segunda coisa que encaixotou foram os dois aparelhos de som que tinha (uma maletinha bege que aberta virava uma vitrola já com amplificador que havia ganhado quando fez nove anos de sua mãe e um aparelho de cd comprado com o dinheiro de uma série de correções de monografias que atrasou em um ano a sua própria formatura). Depois vieram os utensílios domésticos, como panelas e partos, talheres copos, vasos e amontoado ao meio (pois uma nova categoria não se sustentaria sozinha dentro de uma caixa) os poucos quadros e pôsteres que tinha como decoração. Pro fim vieram os livros, organizados através de sua nomenclatura definida pelas normas técnicas. Deixara de fora da caixa apenas o Ulisses e à noite encarava a edição às escuras.
Sérgio perdeu o prazo para trocar o vale-livro, mas o manteve guardado dentro de sua carteira do mesmo jeito que manteve a dúvida em sua cabeça pelos meses seguintes. Valéria tingiu o cabelo de vermelho por meia hora e depois se arrependeu. Teve que esperar uma semana insatisfeita até que o movimento no salão diminuísse para voltar à cor anterior. Sueli queria pintar seu cabelo também, mas a vó não deixou. Imagine a neta chegando na casa da filha com o cabelo vermelho como um pica-pau. Mas Sueli sonhava que tinha o cabelo vermelho como o fogo, assim como Valéria e as duas saiam de mãos dadas pelo céu, substituindo o sol e trazendo o amanhecer. A mãe de Sueli aparecia todo fim de semana para ver a filha e descansar da correria de começo de ano. Trabalhava em uma panificadora e tinha os braços cansados de amassar pão todo dia. Sentava-se sempre numa poltrona antiga na casa da mãe, uma com braços acolchoados bem em frente à janela e dali por várias vezes observou a mãe a observar a rua. De vez em quando se sentava à sombra do pé de carambola para ver a filha correndo pela rua com as outras crianças e recordava que quando criança morria de vontade de brincar naquela árvore, botar um balanço ou simplesmente subir em seus galhos para lá de cima ver melhor os pássaros baterem as asas, mas pela obsessão da mãe nunca pode chegar perto do pé. Uma vez, quando mal havia aprendido a andar de bicicleta e suas pernas ainda não tinham firmeza no pedalar, perdeu o controle em uma pedrinha e foi bater de frente na árvore. Ficou três dias de castigo, sem brincar com as outras crianças, lavando a louça e estudando matemática na sala onde a mãe podia vigiar. Vingou-se comendo escondida as carambolas que caíram na batida.
Tudo parecia diferente neste começo de ano, exatamente como pareceu diferente no começo do ano anterior e do outro ainda. A Rua Plínio de Camaro aos poucos foi retornando à morosidade com a chegada de fevereiro. Todos corriam com seus medos e lembranças e com a espera de que o ano ainda poderia melhorar ou ainda voltar a ser o que era. Todos sentiam saudade, vontade, desejo de algo e corriam tentando descobrir do que. Todos se escondiam um pouco mais atrás de livros e sorrisos; da velocidade do dia que reclamavam uns para os outros, mas que a noite deitados em suas camas com a preocupação que vem do silencio, davam graças a deus pelo tempo que não falha. Apenas o gato da irmã de Marcos continuava deitado na escada onde o pássaro do ano novo pousou. Era um bom ano para descansar.

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