Sunday, February 27, 2011

Falar ao pai

O pai falava, quando muito, umas dez palavras por dia. Sempre austeras, de sem retrucamento e destinadas aos assuntos eleitos mais importantes. Não assentia tagarelices e cortava as falas, com olhar cheio de significações ou com um grunhido algo animalesco. Reinava a mudez, como se já tivessem falado tudo. Habitavam nos silêncios da casa, com as falas das sombras. Assim, no semi-silêncio as meninas cresceram, mais com as coisas, menos com as palavras— com quase nada de risos.
Viviam: o pai fazendo vezes da mãe, mal e mal, sem dar conta de ser ele mesmo, as meninas, fazendo-se de filhas. Na quietude da casa os mais insignificantes ruídos ganhavam cara de trovão: um estalar do madeirame, um assovio do vento, duas ou três rolinhas ciscando no telhado, o latido pro ar do cachorro e algum pensamentozinho que pudesse escapar das cabeças mais distraídas. Calhava que da rudeza do seu ensimesmamento, o pai também deixava transbordar um fiapo de pensar. Misto de lembrança com cisma; sentimento com atavismo; querer com dever. Seguia um profundo suspiro.
Quando em domingos cheios de sol, azuis como um cartão postal, o silêncio por pouco era superado por esboços de risos, aprovar o gostosume da galinha ensopada, polenta farta, repolho frito, radiche e uma tirinhas de torresmo frito, bem salgado, pra jogar sobre o prato cheio de não poder. Obrigados, passa a carne, mais polenta, um copo d’água, bater de talheres na louça, vento balançando o pé de limão no quintal, e o almoço ia. Elas limpavam tudo bem rapidinho e o pai, como todos os domingos, dormia. Nenhum piu, sussurros ou cochichos enquanto ele não acordava. Era o dia da felicidade, quando desconfiavam que amavam-se, sem saber de todo, sem expressar, sem falar. Do jeito duro para não perder o respeito das filhas, reverenciando o pai sem poder correr-lhe ao colo. Formal, rodeado de quases, mas quietos, amavam-se.
Anos e velhice avançaram e o homem sentiu todo o pesadume. A morte fez-se e o pai, querendo recuperar o tempo perdido, ou talvez sentindo apenas medo, quis conversar: “minhas filhas, falem comigo, sinto medo do mar de silêncio que está chegando, falem, mostrem sua voz.” Mas não sabiam o que falar, a não ser “sim, pai!”.

LM

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