A adaga de Celan
Quem conheceu Roldo Bonadiman ou ouviu falar de seus feitos, jamais teve motivo para duvidar que suas palavras fossem um recorte bastante fiel da realidade. Foi preso pelos Camisas Negras, conseguiu fugir antes de ser executado, liderou inúmeros grupos armados de resistência pelos subúrbios de Roma e, em 28 de abril de 1945, ajudou a pendurar o Duce e sua amante no telhado de um posto de gasolina. Roldo podia ter inúmeros defeitos, mas mentiroso não era, muito menos lunático, o que fiquei sabendo tarde demais e, apesar da fama de aventureiro ─há quem o tenha classificado como mercenário─ ele era também um artista e mantinha intensa correspondência com muitos outros artistas e intelectuais, especialmente durante o pós-guerra. É uma hipótese plausível afirmar ter iniciado neste período sua amizade com Paul Celan e como não sei dizer ao certo como isto se deu, assumo tal hipótese como verdade. Minha convicção está no fato de Hans Bender ─provável elo entre os dois─ citar, em um artigo de 1959, um sarau onde se apresentariam Celan e Bonadiman. O certo é que os dois trataram de erigir uma sólida amizade, mesmo que algum observador distante pudesse objetar que tão aparentes diferenças de personalidades seriam incompatíveis em uma amizade duradoura.
Quanto a mim, conheci Roldo Bonadiman em 1995. Fomos apresentados na casa de minha mãe, durante um jantar dado por ela a um pequeno grupo de velhos amigos. Fiquei sabendo de sua influência na decisão de meu falecido pai, de migrar da Itália para o Brasil. Para mim isto bastou como apresentação e, como já estava há alguns meses sem ver mamãe, fiquei no jantar mais tempo do que minha paciência com aqueles velhos rituais de relembrar o passado poderia usualmente tolerar. Fiquei vagando entre conversas sobre a guerra, sobre cadáveres de parentes invocados pelas lembranças, por lombadas de livros da minha infância ─ainda na estante, como a me esperarem─ e por toneladas de um nostálgico sentimento de procura do tempo perdido. Pouco a pouco os convidados foram se retirando, até ficar apenas Bonadiman, que olhava através da janela para algum ponto entre a noite e a história. Mamãe dormitava no sofá. Ele pareceu ter percebido que eu o vigiava e antes mesmo de virar-se começou a falar.
─ Charles Trezinni, não é mesmo? Conheci seu pai, um homem com qualidades pouco vistas nos homens de hoje. Era uma das poucas pessoas que verdadeiramente seria capaz de morrer por alguém. ─ Pensei em formular algum tipo de resposta ou continuidade a sua fala, mas antes de eu abrir a boca ele continuou. ─ Ele sempre dizia que era muito fácil sair por aí falando que morreria por fulano, ou por beltrano, pois o sujeito, lá no fundo, sabia que ninguém viria tomar-lhe a vida para cobrar tal afirmação, mesmo quando diante de algum enfermo, se fala que queria estar padecendo no lugar daquela pessoa, mas sabe-se que Deus, ocupado demais com suas tramas inacabadas, não virá fazer cumprir tal desejo.
─ Do que sei, ao contrário de mamãe, ele era um ateu convicto. Lembro pouco dele, mas não esqueço das broncas que ele dava em mamãe enquanto ela me ensinava a rezar.
─ Era o tipo de ateu que falava com Deus, falava de Deus, mesmo que fosse para amaldiçoá-lo.
Após este breve diálogo calamo-nos por alguns minutos. Fez-se um silêncio opressivo, podíamos escutar a respiração sonolenta de mamãe e cada tic e cada tac do relógio de parede parecia levar bem mais do que um segundo para vibrar na semi-escuridão. O relógio começou a armar seu mecanismo para soar um quarto de hora qualquer e poderia jurar que havia produzido o mesmo som de alguma máquina medieval de tortura, enclausurada no mais frio porão da Inquisição. Exagero ou não, aqueles minutos pareceram horas e não sei por qual motivo, senti, naquele momento, que poderia matá-lo ali mesmo, talvez até devesse fazê-lo.
─ Ângelo Trezinni teria lido aquelas palavras, mas eu não tive coragem. Nunca tive medo de morrer, mas o que Celan me pediu estava além de minhas forças. Ele me escreveu em abril de 70 e pedia que fosse vê-lo urgentemente em Paris. Já andava apresentando sintomas depressivos e não tardei em pegar o primeiro trem. Em Paris nos encontramos no Jardin des Plants, próximo da Pont d’Austerlitz, ele estava cadavérico, com olhar distante, sua aparência pouco lembrava o poeta que havia conhecido anos antes. Nos abraçamos longamente e pude sentir que ele estava gelado. Começamos a conversar e a caminhar em direção à ponte.
─Meu velho amigo Roldo Bonadiman, como é bom vê-lo, tocá-lo, sentir seu cheiro ouvir sua voz.
─ Também estou muito feliz por revê-lo, mas o que o aflige?
─ Descobri... a arte, descobri o poema que não existe... nem podia existir, o poema absoluto. Nada me aflige mais do que a vida, nada me aflige meu amigo. Encontrei a mim mesmo e agora nada mais há, devo espiar minha culpa, a culpa por trazer à tona algo que não cabe aos humanos a menos que se homenageie o absurdo, ou, se cabe, que seja em um plano diferente e note que não falo plano superior, senão, apenas, diferente, que seja entre rochedos e campinas, onde poderei tornar-me uma cabeça de Medusa e congelar toda imagem pura e transformar toda palavra em uma imagem e toda imagem em uma palavra e onde nem Mallarmé sonhou, transfigurar toda arte, toda emoção em um poema. Eu desvendei este poema absoluto. Não... nada me aflige, pelo contrário, sinto apenas sede. Não! Apenas sinto o mundo, suas belezas e também suas guerras. Ouço o amor dos apaixonados, ouço também o desferir de cada golpe mortal das batalhas.
─ Estás falando muito rápido, não estou conseguindo acompanhar tuas idéias, mas sinto tua emoção e isto me alegra e me assusta, quero ajudá-lo, mas não sei posso, nem sei se você precisa de minha ajuda. Diga-me, meu amigo, o que posso fazer, pelo menos para dividir contigo o peso de tua, podemos chamar, descoberta?
─ Apenas leia o que está escrito nesta folha, não é mais do que uma linha, não tem nenhuma palavra que tu não conheças, tampouco está em uma língua estranha, mas nela está contida toda a Beleza. Meu tempo acabou, ousei a cometer o pecado desvendar um mistério vedado aos homens.
Estávamos sobre a Pont d’Austerlitz, peguei a folha, dobrada ao meio, era muito gasta, exalava cheiro de bolor e suor. Aquela folha pesou em minha mão como nada antes em minha vida, senti todo o peso de definições que nunca antes imaginei conseguir postular, senti o peso de todas as páginas em branco oprimindo o poeta e tremi. Não tive coragem de desdobrá-la, muito menos de profanar aquilo que ali estava escrito, mas sabia que segurava algo grandioso, mais grandioso do que jamais ousarei a me imaginar. Ele apenas olhou-me, nada disse e atirou-se nas águas do Sena. Nada fiz para impedi-lo e senti que nada deveria fazer. Coloquei a folha no bolso e saí dali sem ter rumo certo, modificado para sempre. Sabia que jamais teria coragem suficiente para tentar ler aquelas palavras. Em junho daquele ano conheci um escritor uruguaio cujo nome me escapa, mas lembro de estarmos em um café em Paris conversando sobre algo que poderia ser o poema latino na história da Morte, ou sobre os preparativos para a Copa do Mundo de futebol, quando ele avistou um seu amigo. Era Borges, acompanhado por outro senhor, a servir-lhe de guia. Sentaram-se conosco para tomar um café. Senti que se havia alguém com quem eu pudesse dividir o fardo que Paul me havia entregue, era com o argentino. Falei-lhe de minha amizade com Celan e como o vira morrer, óbvio que mostrou-se enfadado com aquela conversa desconexa, mas quando entreguei-lhe a folha, quis saber do que se tratava. Expliquei da maneira mais breve e direta que pude. Borges segurou a folha por alguns minutos e ficamos os quatro calados, esperando por um gesto seu. Perguntou-me se eu era capaz de ler para ele. Me amaldiçoei por ter encontrado alguém com coragem para desvendar aquele segredo, mas que não podia enxergar, senti toda a humilhação do mundo e nada pude falar. Ainda em silêncio devolveu-me a folha, levantou-se e antes de sair disse: “O dia que estiver preparado me procure, venha a sós. Nada tenho a perder, apenas espero a morte chegar, não a temo, mas não consigo antecipá-la. Não vejo e se ousar escutar o poema, talvez eu comece a vagar pela Argentina, como um mendigo e isto me basta, mantive-me conservador por muito tempo.”
Lembrei-me do conto O espelho e a máscara e duvidei de Roldo, qualquer um poderia ter lido a história e inventado aquilo. Ele me pareceu uma espécie de Forrest Gump italiano e, ainda sentindo a necessidade de matá-lo, intimei-o.
─ Tem a folha?
─ Sim.
─ Dê-me a.
─ Jovem, o que entende de arte, de beleza, de poesia?
─ Não vou fazer uma explanação de meus conhecimentos acerca da filosofia da arte, tampouco de um termo tão difuso quanto a beleza. Muitos e mais bem conceituados filósofos já discorreram sobre estes temas e apenas limito-me a encarar a arte como algo que só cabe em sua definição quando acompanhado por uma adjetivação tal que só possa ser empregada para ela e quanto ao belo, repudio tudo aquilo que é considerado belo pelos esnobes do mundo da arte. E a poesia, apenas sinto-a, ou não vale a pena.
Roldo Bonadiman não falou mais e como estivesse participando de um ritual, retirou solenemente a carteira do bolso do paletó e sacou uma folha muito velha e gasta. Entregou-me com reverência, foi até mamãe, abaixou-se para beijá-la. Ela despertou, se despediram e voltou a dormir. Não lembro se Roldo saiu da casa ou simplesmente desapareceu. Fiquei na sala, imóvel, até o amanhecer. Os primeiros raios de sol como que me resgataram de um estado de torpor e aproveitei as primeiras luzes do dia para desdobrar aquele pedaço de papel. Olhei e, como na história de Roldo, não havia mais do que uma única linha. Li e penso ter tentado pronunciar as palavras, mas senti-me abatido demais para poder abrir a boca e senti que estaria blasfemando violentamente se fizesse vibrar no ar o som daquele poema. Pensei em rezar, mas já havia esquecido todas as preces e já havia esquecido Deus, lembrei apenas de uma passagem na Bíblia onde ele fala a Moisés: “Não me poderá ver a face, porquanto homem nenhum verá a minha face e viverá.... tu me verás pelas costas; mas a minha face não se verá.” Se Deus existisse, eu tinha acabado de ver sua face, mas como ele não se pronunciou, pensei ter descoberto o sentido da vida. Nada fazia sentido. Julguei que o melhor a fazer era sair e jogar-me sob as rodas de um trem no primeiro trilho que encontrasse.
Escrevi estas minhas últimas palavras e deixei a casa. De minha boca nenhum som sairá enquanto permanecer nesta vida, mais nenhuma palavra ou imagem será desenhada por minhas mãos e ninguém verá este papel que trago desde Celan, Bonadiman, Borges e quantos outros ignoro, conquanto não possa destruí-lo. Se encontrar meio de por fim à minha existência, farei, se faltar-me forças é porque devo expiar minha culpa e vagar pelo mundo e se a loucura se apossar de minha mente, tomarei por um elogio da providência.
LM – 17/2/11
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