Terminal
Anunciaram, de pronto, sem mesuras de julgamento, minha execução: senti todo o alívio possível de ser sentido. Imaginava-me jovem, pouco mais que um terço de vida, mas, herança dos suicidas da família, obsedava-me não, obcecava-me a morte, o milagre da morte, minha única e mais cara certeza. Da origem, trago apenas lembranças vagas: um irmão pendurado pelo pescoço, um tio botando cicuta nas tripas, a mãe se atirando da ponte e alguns nomes de lugares. Lembro de alguém ter mencionado Londres; outros, jurando intimidade, afirmavam jamaicano. Sem o timbre do Estado no papel, poderia ser de qualquer lugar: já fui de Bonn, Paissandu, Buffalo, Dublin, nomes de cidades, agora, invisíveis.
Também incerto era meu nome. Já fui Jonh, Alfredo, Etcheverria, Ernest, Haward, Te-Hoba, Rigel. Qualquer um poderia pôr-me em conta de louco, qualquer um, bastava trazer os bons costumes no bolso e encontraria um pervertido adorador da morte, profanador de cadáveres. Soube-me homem, no amor inumano, demasiado humano, sem espírito, com alma. De frieza austera, mas sem a pecha da reprovação; a mais autentica combinação de cores, partindo do arroxeado nos lábios à pureza da palidez; minha total liberdade para o amor eterno das carnes, enquanto não se consumiam pelos vermes, eis as lembranças dos meus vícios-amores e a causa da minha condenação, libertação. Possuí, virulento de paixão, muitos corpos, com fúria, tesão, mas o amor destinei a apenas uma, indesejada das gentes que não conhecem sua verdadeira face.
Eram soldados, havia patentes, ouvia ordens para os preparativos e descobri fuzilamento. Não pensei e, se para ter o que falar, ou gabolice, creio, ter gritado, com contenção calculada, medindo as palavras: minha irmã virá me buscar. Arrependi-me. Ela viria de qualquer maneira, naquele muro, daqui a dez anos, pela fome, por vícios, pestes, susto, mas viria e senti como se estivesse blasfemando. Não me bastava o amor? Tinha de tripudiar sobre os cadáveres respirante daqueles amedrontados? Mudei minha fala, vibrando, então, minha boca completa de dentes, com toda a voz reprimida em anos de representação, e ordenei um executem-me logo. Trago gosto, alívio e, do feito, alegria, para parecer heróico.
Olhei, como me ensinaram e nunca tive vontade, fixamente, nos dezesseis olhos por trás dos fuzis e percorri matizes desconhecidos, repletos de novidades, matizes de azul, castanho, negro e, apesar do descobrimento, da contemplação do que poderia ser a outra face da minha amada, não consegui enxergar-me naqueles pequenos lagos salgados. Tentei aos bocaditos, um pouco, um fiapo, em cada um; pontos dispersos, sem um inteiro, fragmentos. Faltava imagem, busquei palavra, um nome familiar, uma carta, um bilhete deixado no vagão do trem, e eu também não estava lá. Tinha apenas, melhor, a segurança da morte, momento aziago, veio um calafrio, arrepio de delírio e fraqueza, que se fez insistente quando sumiu o chão da minha certeza: tinha ciência da morte, mas, assentara, cruel, a dúvida: e da finitude?
A voz do comandante do pelotão, naquele instante, passou para o campo das abstrações: era apenas um leve brisa açoitando, com delicadeza imprópria, arbustos semi-secos, prestes a se desfolharem no outono. Perdi a capacidade de compreender a fala dos homens, também a minha. Existiam apenas as coisas, privadas de nomenclaturas. Tentei ordenar rapidez na minha execução, talvez tenha dito isto mesmo, ou balbuciado, quase. Não eram mais palavras, eram, antes, pedaços de ar carregados com sombras, mãos, suores, pedras, vindas de um jardim ancestral, anterior aos caminhos possíveis e antes de serem sombras, mãos, suores ou pedras. Pensei em rezar, para quem? Extinguiram-se as palavras e já não mais sabia do amor, da fé, de lembranças, infinito, finitude, dúvida.
Que escritos, que forma "inteligível ao mundo sensível".
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