Sunday, February 27, 2011

Verbo divino

Saiu da cama e foi direto pro banheiro. Urinou uns três litros, lavou as mãos e o rosto. Não escovou os dentes. Nunca escovava os dentes ao acordar: se já havia escovado antes de dormir e não comera nada durante a noite, não tinha motivos para escovar novamente. No máximo uma enxaguada rápida. Após se justificar para a pasta e escova de dentes, vestiu-se e saiu. Era o dia da entrevista. Precisava tomar uma xícara de café.
Uma firma de Curitiba estava recrutando vendedores para a região. Não exigiam experiência. Parecia bom. Já estava ficando complicado viver da pensão da mãe. Algo parecido com a consciência começava a pesar-lhe. Ainda mais agora, aos quarenta. E a mãe já estava um pouco acabada. Tinha de mudar, especialmente agora que a velha entrara para uma dessas igrejas evangélicas. Já não liberava mais tanta grana, principalmente para bebida. Mulher então, nem pensar. Ta certo que a cachacinha do boteco da esquina não era nada cara e com dez paus conseguia serviço completo com alguma puta gorda do centro.
O maior problema era ter de mentir todas as vezes. Não admitia ter de mentir sempre que fosse pedir mais dinheiro. Precisava arranjar um emprego.
— Fuma?
— Não. — Mentiu.
— Bebe?
— Só no sábado, e socialmente. — Mentiu novamente.
— Tem algum vício?
Pensou em responder a Igreja. Achou que era forçar demais.
— Costumava jogar um bingozinho no galpão da igreja.
— O senhor já teve alguma experiência com vendas?
— Nenhuma.
— Já leu a bíblia?
— Já li Nietzsche.
— Nós vendemos bíblias. O senhor acha que consegue vender bíblias?
— Por Cristo! Aquele filho da puta vai se arrepender de ter escrito tanta bobagem e por ter matado o Barbudo. Vou infestar esta cidade com os livros do Cara.
Descobriu que vender bíblias não era tão fácil assim. Após uma semana só conseguiu vender duas: uma pra mãe e outra trocou por três fódas com a puta gorda do centro.
Após três semanas sem vender mais nada, resolveu entregar as bíblias restantes e acertar as contas. Enquanto esperava o ônibus, na fila do terminal central, resolveu ler um pouco e como só tinha bíblias, achou que serviriam pra alguma coisa. Pegou uma e mandou ver, se empolgou e sem perceber lia em alta voz. Eclesiástico capítulo 3, versículos 33 ao 34 e capítulo 4 até o versículo 11. Quando terminou tinha um punhado de notas miúdas e moedas colocadas ao lado da bolsa de bíblias. Arrecadou vinte e oito reais. Comprou cerveja, uma cachaça da boa e procurou uma puta menos gorda. Devolveu as bíblias, menos uma.
Escolheu um ponto movimentado no terminal e agora lê, a todos os pulmões, um trecho do livro santo, semana após semana, sempre de terça à quinta-feira.

LM

2 comments:

  1. Ola, querido....admiravel sua arte da escrita, porem nao menos admiravel como a pessoa que és...Saudades! PS: virei leitora assidua de sua pagina, PARABENS E SUCESSO! Bjs
    Rubia Lopes

    ReplyDelete
  2. Anonymous5:08 PM

    • A beleza é esse mistério maravilhoso que não vai rachar, psicologia ou retórica.

    Escreva um livro..........Escritores como voce são raros.

    Voce e maravilhoso.
    Te amo

    ReplyDelete