Saturday, December 18, 2010

Escritos para as sombras

Guardado na terceira gaveta da esquerda, na mesa de trabalho de Aderbal Fuentes, ao lado da pasta e da escova de dentes, de uma revista velha e de alguns clipes e alfinetes, esconde-se uns manuscritos. Folhas de caderno, de blocos de recados, de agendas, de pacotes de cigarros. Tudo cronologicamente organizado. São cartas sem destinatário, pedidos de desculpas, invenções de si mesmo, desabafos, atestados de existência, alforrias e outras mentiras que os humanos contam para o espelho. O autor imagina tais fragmentos como sendo um todo, coeso, mosaico labiríntico, mas uno. Aderbal prefere quase não pensar nos manuscritos, mas sabe que aquelas palavras, começadas a ser juntadas há mais de 20 anos, compõem uma mensagem de renúncia da lucidez, um abrir mão da sanidade e, mesmo já tendo decorado linha por linha, precisa folhar o calhamaço quase todos os dias. Necessita ver e tocar os papéis, pois sabe que assim que sua mensagem for enviada, estará assumindo a loucura ou deixando a vida.
Já esteve muito perto de colocar as folhas na caixa de correio, faltaram uns míseros selos, ou então, um bater de asas de besouro o distraiu. Às vezes põe em um envelope oficial, carimbado com brasões imponentes e anda pelas ruas como quem segura um ofício ou despacho de alta importância para o Estado. Leva seu embrulho passear pela cidade e quando cansado, para e toma um café, não sem antes, repousar o pacote com solenidade sobre a mesa, para que todos os passantes possam ver quantos carimbos e logotipos vistosos ele traz.
Aderbal trabalha na mesma repartição há vinte e cinco anos, quase o mesmo tempo de casado, tempo suficiente para criar duas filhas e um filho. Bebe pouco, não fuma e tem boa saúde, bons dentes, quase nunca vistos. Houve quem o alertasse do comportamento pouco recatado da esposa, mas ido o viço, isto parece ter parado, agora ela dedica-se à religião. Os filhos, sem carência do herói, almoçam com os pais três ou quatro vezes por ano. Na juventude pensou que poderia ser poeta, agora pensa apenas no dia em que vai enviar sua mensagem, ou deitá-la ao lixo.

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