Saturday, December 18, 2010

Indisciplinado demais para fazer postagens regularmente, Paulo Horn me pediu que publicasse alguns de seus escritos. Sendo que um pai não pode negar certos pedidos dos filhos, eis que postarei, mais ou menos a cada semana, um texto horniano. Se estes escritos receberem comentários mais elogiosos do que os meus,algo bastante provável, excluirei-o sumariamente deste espaço e darei-lhe uma boa surra.


Borra de café tintado nas fitas de máquina de escrever

Havia um copo de café, sujo como almofada de carimbo velha, que estava lá, no centro da mesa, intacto. Ainda restavam algumas centelhas de calor nele, mas o mais provável era que elas se dissipassem no ar condicionado. Mais tarde eu viria e ainda absorto com tudo que ocorrera desde o momento em que pegara o carro esta manhã e saíra pela rodovia rumo ao trabalho até o descanso na cadeira e tomaria um longo gole do café já frio, engolindo a tinta fria de carimbo com dificuldade, em que jogaria fora o resto do copo de café. Mas por enquanto havia o copo de café com centelhas de quentura em cima da mesa, junto com diversas folhas datilografadas em máquina de escrever antiga, rabiscos de caneta tinteiro e borra de fita de máquina. Alguns livros também estavam largados na mesa, por cima do criado mudo, ao lado do copo de café, com suas páginas displicentemente abertas, marcadas por papel picado com borra de fita de maquina de escrever.
Houve um velório e, talvez por isso, o papel picado de carnaval caiu da estante em câmera lenta. Cada vez que parecia repousar no tapete levantava em uma revoada, dançarino nos eixos do mundo, levando num instante a borra de café para longe do paladar, para longe das comentadas tarde de verão, escritas com fita de máquina em papel de quinta, na quina da sala, segurando as paredes num conceito de arquitetura que parecia vir de trás, de um ângulo totalmente novo, de um ângulo palavrar, de um ângulo escritural, entre escombros de letras perdidas nas dobras de livros não escritos que o acaso roubou da memória e que a memória roubou da escrita, e que a escrita roubou da perdição. E perdido nesta revoada de confete surgia uma idéia solitária, observando a dança como quem espera a passagem de um cometa com um desejo no arpoador do coração, buscando por entre estrelas um infinito de marcações no quadro negro da vida, na vida negra do quadro; quadrado cartesiano para as imperfeições do pensamento, das letras perfeitas, imperfeitas na criação da palavra que junto com você formou aquele ângulo triste no arpoador do meu coração.
Sim, sim, mas antes dessa revoada carnavalesca houve o enterro do natal com sua estrela guia norteando os palmos de terra cavados na estrada do dia, da noite e adentro, e você, meu presente, despindo-se entre as paredes de palavras e conceitos e excitações; dançando revolta como papel de parede picado, tinta descascada nas curvas venosas das horas, mostrou-me incerto como um pequeno filhote de furão escondido nas gavetas da cozinha de idéias que logo, logo, tornar-me-ia um domesticado filhote de gato, que não mais iria buscar a noite para cantar a sinfonia de miados síncopes, de sincopada melodia de cordas felinas de violino; e procuraria sempre minha caixinha de areia para despejar minhas tristezas e me entreteria com tua beleza acachapante até dormir fetal bola de pelo, no teu colo como se isso fosse grande coisa. Mas as coisas sumiram como grão de areia em baixo da unha.
A borra de café de fita de máquina de escrever aparecia ainda mais forte neste ano novo e o ângulo triste foi transformado em ângulo palavrar. As palavras angulares deram lugar a cantos, sons e becos, botas e brotos de brilhos de olhar, que me pegaram de canto numa escritural inovação das coisas matinais, como grãos de café que já brotam branquiais nas turvas águas de tinta que são as lágrimas de quem bebe tinta de máquina de escrever quando recita poemas nas pistas e autopistas dos postes de paredes de livros e folhas e cantos de bocas e risos de todas aquelas que sorriem para os olhos de um filhote de gato domesticado por você. Como eu. Mas então este ano novo apresentou-se angular e palavra no paladar e eu não tinha idéia de onde buscar novas palavras para erguer a arquitetura deste livro não escrito que eu vinha escrevendo até te conhecer e perder a inovação na borra do café. E borrado aparecia o céu sobre a esquina da folha em branco, e a tinta caminhava, teclando espaços em branco que preencheria com ângulos tristes e que, talvez revoltado com todo esse gosto amargo de não, não e não deixasse essa lacuna para que vocês preenchessem como bem quisessem, e não atrapalhassem as lamurias que tijolos rijos de resmungos eu ia erguendo em paredes de palavras tristes, de triste palavrear.
Dizem por aí que um pouco de palavreado poderia me tornar um escritor novamente ou realmente, e que tentar erguer paredes com ângulos palavrares era inútil, pois palavras erguem dunas com pó de café que sobra no coração. Pois eu até concordo que os ângulos palavrares são instáveis demais para erguerem qualquer coisa, mas sempre me perco com seu dedo dançando com os incautos últimos guerreiros de café borrado de tinta de máquina de escrever no meu lábio, plantando um silêncio cafezal e assim como uma traça não tem culpa de se alimentar de histórias, você não tem culpa de se alimentar de ângulos tristes. Botar a culpa disso em você seria negar toda a roda gigante por onde o mundo muda e retirar aquela etiqueta que identifica todo melancólico homem, sentado num banco de praça, com vários espelhos ao redor, um pombal de homens pegos no redemoinho de ângulos tristes que um dia com certeza foram ângulos palavrares até o primeiro e pequeno toque seu que muda tudo roda a roda e reduz a verborragia que é característica daquele cruzamento de idéias que são, em parte e nunca em todo, os ângulos palavrares.
Sabemos então que os ângulos tristes que condensam os homens um dia foram ângulos palavrares que tentaram serem paredes de conceitos e excitação e que ergueram dunas de borra de café tintado nas fitas de maquina de escrever, e que somente são tristes por característica úmida que rola ao rosto quando você não se despe e ainda que isso dure todo o infinito de coisas imutáveis, nunca é culpa sua e sim das fantasias desenhadas no arpoador do coração. Bem pensado, te eximir da culpa – mesmo que seja impossível pôr culpa alguma em você – seria negar também sua natureza destrutiva em salto alto, e construtiva em risos e lábios e reflexiva em paixões arrebatadoras. Havia então uma trindade não santa, paradoxal que era além de tudo criadora de ângulos tristes no arpoador de corações condensados pela simples passagem de um sussurro, de um suspiro, de uma você. Mas pra você isso é instinto. E instintivamente eu fui até a garrafa térmica, sem lembrar que a borra de café estava ainda mais forte no paladar, e fui maquinando e erguendo paredes, criando janelas, fugas, vãos, vasos, verbos e tudo era ângulo reto, torto, todo tinta de máquina de escrever velha; e verborrágico como um arquiteto de livros, romances, contos, contas, cantos, curtos espaços de branco deixava borrado para o espaço de verbos ainda vindouros e aquele livro que escrevendo ainda não escrevi ia se formando um edifício de palavras caídas de dicionários fictícios, empilhados em hiatos abertos por frases não ditas, escritas nas borras das fitas, nas máquinas de café, no amarelo do tempo que fica em quem toma demais.
Então de repente tudo desmoronava como um castelo de cartas de amor mal escritas pelo acaso de versos recitados nas sombras das dunas de pó de café, que se erguem cada vez mais borradas nas fitas de máquina de escrever, coadas em incautos sonhos recitados no arpoador do coração, e despidas pela luz que surge do teu despir-se, sobrecarregando todos os monumentos construídos sobre escombros de línguas esquecidas com ângulos palavrares rústicos, que a arqueologia de alfabetos entristecidos decidiu ignorar na procura por uma forma de reverte a tristeza que emana melancólica da beleza que você reflete. Claro que tentaria em vão reerguer suas paredes entre os escombros de letras perdidas nas dobras de memória que o acaso roubou das entrelinhas de versos de cantigas de roda, que rodopiaram feito folhas secas no mar de tinta que rola dos olhos e que pinta a face como um porta-estandarte de um carnaval sem festa, uma festa sem risos e uma fala sem todas as felicidades conhecidas pelas letras e alfabetos. E ali saberia que esse conceito arquitetônico que em vão tentava fazer valer não poderia ser estabelecido com ângulos mutáveis, com ângulos instáveis e que a instabilidade, embora fonte criativa de todo ângulo palavrar, é a ruína que transforma todo edifício de idéias, de palavras, de frases, fórmulas, pensamentos, prantos, portas de lacunas soltas nas folhas não escritas pela idéia, em dunas de pó de café extraído das sobras de canetas tinteiro borradas nas páginas não escritas de textos não tratados, de tratos não tolhidos e passados datilografados.
Enfim, acabara a tinta de máquina de escrever borrada no coador e espremida dentro de um último copo de café; aquele que eu tomaria devagar, recostado na cadeira e abraçado pela quentura que, se esvaindo, deixava ainda mais forte o gosto de tristeza no paladar. Aninhado como uma bola de pêlo no seu colo, acreditando ser mais do que realmente era, ia me tornando também um ângulo triste, trocando a afasia por um lento ronronar. Sim, havia caído todo tipo de palavra, acabado todo tipo de café, soterrado todo ângulo palavrar ou triste, mas restava ainda a esperança, este ser incauto que acredita piamente ser capaz de contornar a tristeza e reverter a incerteza, apenas por adorar um sorriso. O ano novo começara forte, como os outros.

Paulo Guilerme Horn

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