Saturday, December 18, 2010

Cinco histórias brasileiras

1 - Ao som do capim seco sendo pisado, Samuel Almeida pensava e lembrava. Pensava na pouca comida alojada no estômago e lembrava de quando seu pai contava do tempo em que chovia e ele colhia feijão e mandioca. Pisava mais, agora em pedra e terra ressecada; na sua frente, erguidos de ameaças, ferros e concretos engolindo cana e cuspindo progresso. Samuel Almeida não trazia arma, abriu o peito e se fez Quixote: bebeu a água carregada de vinhaça e prostrou-se na terra, para não mais fazer dobras no capim seco.

2 - Ubiratam Rosso segurava o palheiro e desviava dos pés de eucaliptos. Desviava, desviava e acabou retornando ao local de partida. Nova tentativa, outro palheiro, e novo retorno. Parou para sentir o frio do Minuano, mas este também desviava e se perdia entre os troncos. Não havia mais espaço para o homem e apagou o palheiro. Ubiratam Rosso escolheu uma, entre as milhares de plantas, e se fez árvore. Um galho com forquilha alojou seu pescoço enquanto o resto do corpo balançava ao sopro do vento perdido.

3 - No meio da selva, Francisca Cabral fazia as tarefas dos filhos mortos. Sangrava as árvores, enchia as coités, defumava e trocava por um pouco de farinha a grande bola de borracha. Nunca reclamava, nunca deixava de recolher o látex, nunca falava com as pessoas, só com as seringueiras. Contava como estava cada vez mais fraca, perguntava se os filhos estavam bem, se o marido ainda vivia e perguntava o que era felicidade e se era verdade que existiam pessoas felizes. As respostas, só Francisca ouvia.
A última vez que Francisca Cabral foi vista, entrava na selva. Há quem diga ouvir a conversa dela com as árvores. Agora são as plantas que fazem perguntas.

4 - Da praia, Félix de Souza conseguia enxergar a Ilha dos Remédios e o butiazeiro. Ele não gostava de passar nestes lugares e sempre observava bem antes de por o barco na água. Se percebesse qualquer sinal vindo de lá, não saia para o mar. As pessoas falam que Félix, olhando para a ilha e para o butiazeiro, sabia quando o perigo estava por perto.
A cada retorno, ele trazia menos peixe; galhos e garrafas sem mensagens enchiam a rede. Félix de Souza percebeu um sinal, a despensa vazia o fez partir mesmo assim e, em alto mar, uma grande embarcação faz gravetos do seu barco. Agora, os demais pescadores tentam enxergar um sinal, da ilha, do butiazeiro ou de Félix.

5 - O carrinho de tração humana, abarrotado de papelão, garrafas de plástico, latas de alumínio, revistas, algumas pedras de craque, uma garrafa de aguardente e Pedro João Dias, aos 6 meses de idade. Na tração, se revezando, Catarina da Rosa e Aluisio Correa Dias. Fora o bebê, o craque e a cachaça, o casal vende todo aquele lixo por dez reais. Catarina e Aluisio não passam dos 20, aparentam 30 e se conheceram na rua, onde moram. Hoje tiraram a sorte grande: revirando o lixo em uma rua de bacanas, encontraram um pacote cheio de pedras de craque —nem foi preciso passar na Cracolândia — e hoje vão fumar pala última vez. Pedro João Dias será encontrado, perto de duas carcaças inertes, será enviado para um hospital, passará no Jornal Nacional, tirarão muitas fotos, e será enviado para adoção. Negro e soropositivo, Pedro ficará no abrigo infantil, o resto da sua vida.

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