Sunday, December 05, 2010

Pindorama, o cão

De uma hora para outra, sem qualquer palpitação que pudesse ser classificada como motivo, bateu-me uma vontade, poder-se-ia chamar a isto de loucura, mas, fato é, a vontade veio e instalou-se: haveria de cortar a cauda do cachorro. Para a subtração, armei-me com um bom cutelo, rijo e maciço, sem deixar de ter a afiação necessária ao barbear-se. Encomendei-o a Bill, antigo fornecedor das carnes servidas nas mesas das pessoas de bem de nossa cidade. Armado, determinado, faltava-me, além da vontade já bem acomodada, uma justificativa socialmente aceita. Sarna! O pobre animal, acometido de daninha molestia, haveria de melhor ficar sem o apêndice tomado de pruridos. Eis-me armado e justificado.
Examinando minhas consciências, qualquer um poderia ali encontrar explicação diversa para a extirpação. O rabo era ordinário, sempre enrolado para cima como que altivo, artifício útil para tornar mais evidente o insolente ânus. Sim, era um ânus insolente, enorme, brilhante, de um vermelho arroxeado escuro e com a insuportável mania de pôr-se a piscar, ou melhor, a mover-se em ritmo de beijos, o tempo todo. Matar o cão, nobre servidor da nossa família, vigilante e obediente era arbitrário e injusto; o ânus, com seu ordinário adorno, deveria pagar sozinho por sua falta de urbanidade.
Antes de prosseguir, algumas palavras sobre o detentor da cauda, poderiam por em justo entendimento, possíveis julgamentos açodados. Pindo era o nome, não exatamente o nome, mas o apelido, uma corruptela do verdadeiro nome: Pindorama. Nome dado em razão de sua cor amarelada contrastando com o cintilante azul dos olhos. Note que, apesar de não pertencer a nenhuma raça específica, Pindorama trazia belas feições e atributos dignos de serem preservados. Era altivo, de porte avantajado, ainda que não pudesse se equiparar a um São Bernado; fagueiro e lépido, a custo alguém não simpatizava com ele. Havia, no entanto, aquela chaga escura e brilhante, já descrita, a enfear-lhe o conjunto. E o rabo? Como já disse, enrolado em si, inútil a não ser para indicar a certeira direção da extremidade do intestino; fino, mais escuro do que o resto do corpo e irregular na pelagem, era o ícone de um processo degenerativo do que poderia ser um belo cão. Sim, um canino de promissor futuro, a não ser pela parte mais periférica do conjunto.
Ao ato, a ferramenta escolhida para intervenção se revelara pouco prática. Havia a necessidade de acomodar Pindo sobre um cepo ou qualquer superfície de firmeza consistente. Faze-lo deitar-se sobre o local apropriado não era tarefa improvável, dada a sua docilidade e obediência, a dificuldade advinha da natureza indômita do apêndice a ser amputado. Determinado, pratiquei uns poucos, zunindo golpes em arbustos. Com mínimo esforço, pude dividir uma pequena bananeira. Era, sem dúvidas, um respeitável cutelo de açougueiro.
Sssssifff! Caim! Caim! Caim! Não poderia classificar como dos melhores golpes. O pobre Pindo salvara-se por eu não ter imprimido a potência adequada. A cutelada acertou-lhe o a coxa e abriu um talho no couro, sem, no entanto, atingir o rabo. Imaginei que melhor seria munir-me com uma tesoura, daquelas avantajadas, usadas para poda de galhos ou aquelas de bombeiros, utilizadas para cortar a latarias de carros com acidentados entalados entre ferragens. Com um bom tesourão não seria difícil posicionar a ferramenta no ponto ideal de corte. Precisava, antes, encontrar o fugitivo, julgo, devido ao susto do golpe infeliz e à dor do ferimento. Reexaminado a nova estratégia, percebi o desarrazoado de imaginar o animal, ressentido com o ferimento na coxa, inerte enquanto espera pelo fechamento inexorável das pinças. Melhor seria aprimorar o uso do cutelo ou de outra arma sibilante.
Enquanto Pindo não retornava, passei os dias a praticar em bananeiras, pequenas palmeiras, galhos de sibipiruna, mas a seiva não atestava minha perícia: o sangue se insinuava. Consegui, a troco de sardinhas e salsichas, convencer alguns gatos e cachorros das cercanias a adentrarem em gaiolas. O sangue dos animais não foi inútil, apesar de algumas perdas, posto que tornei-me, em pouco tempo, um exímio, digamos, espadachim, ainda que munido com um cutelo e, de um só golpe, nenhum rabo permanecia em seu lugar. Mas a matéria prima dos treinamentos logo escasseou e empreendi buscas, infrutíferas, ao sumido cão.
Como os gatos desapareceram da vizinhança, os caninos remanescentes eram deveras ferozes e a seiva das plantas não tem a vermelhidão necessária, avancei sobre meus dedos, ou melhor, de início, apenas sobre a ponta do mindinho esquerdo. Fácil, avancei mais uma articulação e depois outro dedo, e outro, até restarem-me apenas o polegar, o indicador e o médio da mão direita. E nada de Pindorama regressar. Amanhã, passados dois anos da primeira auto amputação, fixarei com amarras e correias o cutelo em minha desdedada mão esquerda e investirei sobre o médio. Espero que o cachorro volte logo, o indicador, quando fechado em si e abarcado pelo polegar, lembra muito a forma do insolente ânus fugitivo.

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